Por Haroldo Caetano*
O presidiário que comete falta disciplinar de natureza grave está sujeito à responsabilização administrativa e a Lei de Execução Penal (LEP) prevê para essa hipótese a possibilidade das sanções de restrição de direitos, o isolamento e, nos casos extremos, a inclusão do faltoso no regime disciplinar diferenciado [1]. A lei ainda estabelece efeitos outros, derivados da punição por falta disciplinar, como a regressão prisional [2] e a perda parcial dos dias remidos [3].
A LEP pressupõe também a necessária proporcionalidade que deve ser respeitada no ato de imposição da sanção ao estabelecer que “na aplicação das sanções disciplinares, levar-se-ão em conta a natureza, os motivos, as circunstâncias e as consequências do fato, bem como a pessoa do faltoso e seu tempo de prisão” (art. 57).
Por óbvio (se bem que o momento é para defender inclusive as obviedades), cada caso deverá ter a resposta proporcional e adequada, observadas aquelas circunstâncias do art. 57 da LEP. A sanção poderá ser desde a mais branda restrição de direitos, passando pela possibilidade de isolamento e, quando a falta derivar da prática de crime doloso com reflexos na segurança interna do presídio, como em eventual ocorrência de rebelião, pode chegar até mesmo à inclusão do preso faltoso no regime disciplinar diferenciado [4].
A depender da espécie e das circunstâncias do ato de indisciplina, há, pois, um sistema que regula a aplicação da respectiva sanção e os seus desdobramentos no âmbito da execução penal.
Tudo isso, evidentemente (olha o óbvio aí de novo!), com reflexo no comportamento carcerário do preso que, com a prática faltosa, terá naturalmente postergada a realização de eventuais direitos no curso da execução penal, como, por exemplo, a progressão de regime prisional ou o livramento condicional. A falta disciplinar impõe a consequente classificação negativa da conduta carcerária, de sorte que o faltoso levará algum tempo [5] até resgatar o bom comportamento que se exige para quase tudo na execução da pena privativa de liberdade.
Diante desse bem elaborado (é bom que se reconheça) sistema disciplinar da LEP, não haveria motivo para a inovação jurisprudencial voltada ao estabelecimento de outras consequências gravosas, não previstas expressamente em lei, ao preso faltoso.
Contudo, ao arrepio da legalidade que deveria imperar em sede de execução penal, com maior evidência nos procedimentos submetidos à apreciação judicial, onde a participação de diversos órgãos de fiscalização e controle dá a entender que sejam melhor respeitadas as balizas legais reguladoras da pena privativa de liberdade, a jurisprudência acabou por trilhar caminhos de duvidosa validade constitucional e, acolhendo nítida hipótese de analogia in malam partem, absolutamente vedada em matéria penal, permitiu a recente edição da Súmula 534 pelo Superior Tribunal de Justiça, aprovada em 10 de junho deste ano de 2015 com o seguinte enunciado:
“A prática de falta grave interrompe a contagem do prazo para a progressão de regime de cumprimento de pena, o qual se reinicia a partir do cometimento dessa infração”.
Se por um lado a solução contida na súmula já é regra expressa na LEP para os regimes penitenciários menos gravosos, como o aberto e o semiaberto, onde a prática de falta grave pode, embora não necessariamente, levar à regressão prisional (art. 118, inciso I), o que impõe a consequente interrupção do prazo para nova e futura progressão, por outro lado não existe disposição similar para quem já está no regime fechado. Para o prisioneiro em regime fechado tem-se o sistema disciplinar já referido [6] e, diversamente do que acontece em outros regimes prisionais, ele não pode sofrer regressão prisional, uma vez que já se encontra no fechado, o mais severo de todos os regimes penitenciários.
Entretanto, a Súmula 534 veio autorizar a imposição de um novo efeito para o preso faltoso também no regime fechado. Segundo o entendimento que pacifica (!) a matéria no STJ, não basta a punição disciplinar, mesmo que esta seja a grave imposição do isolamento do prisioneiro flagrado em ato de indisciplina. A prática faltosa determinará, agora com o aval da nova súmula, o recomeço do tempo para a progressão prisional.
Para facilitar a compreensão do problema, imagine um homem há cinco anos preso no regime fechado e que está a um mês de obter a progressão para o semiaberto. Pretendendo avisar a família da semiliberdade que está próxima, usa um telefone celular dentro da prisão. Sim, há uma falta disciplinar de natureza grave – o uso do telefone celular [7] – que merece apreciação e eventual punição administrativa e, por não configurar prática de crime doloso, a mais grave sanção prevista para a hipótese será o isolamento do preso por até 30 dias [8], segundo a LEP.
Todavia, e aqui peço licença para não pedir vênia, seguindo a malfadada jurisprudência uniformizada na Súmula 534, aquele mesmo preso, que estava prestes a ir para o semiaberto, agora deverá permanecer no regime fechado e recomeçar o cumprimento do tempo exigido para a progressão que, num cálculo grosseiro, levará outros cinco anos. Sim, o uso de um telefone celular, mera falta disciplinar no ambiente prisional, imporá mais cinco anos de prisão em regime fechado ao preso faltoso. Abro parênteses: lembro que existem muitos condenados por homicídio ou outros crimes graves que não ficam tanto tempo presos. Fecho parênteses.
Dentro da lei, a punição pelo uso do celular seria de, no máximo, 30 dias de isolamento. Fora da lei e dentro desse ativismo judicial injustificável, poderá ser de cinco anos ou até mais, a depender de cada caso. Diante de uma lei justa e de fácil interpretação, o Poder Judiciário, cego, consegue produzir severas injustiças, exatamente o oposto daquilo que dele se espera.
E os doutos ministros do Colendo Superior Tribunal de Justiça não tinham o direito de olvidar, como acabaram por fazer, sobre como se dão as relações de poder dentro de um presídio, notadamente nas quase-masmorras brasileiras, superlotadas e caóticas, onde sanções disciplinares dependem menos de provas do que da vontade aleatória dos donos da cadeia (presos que comandam alas ou unidades inteiras) ou da atuação seletiva de agentes prisionais nem sempre orientados pela legalidade em suas ações. Como se vê às escâncaras, a Súmula 534 também demonstra o distanciamento do STJ da realidade sobre a qual recaem suas deliberações em matéria de execução penal.
Mas com a sanha punitivista dos nossos dias, pautada na cultura do medo e do ódio, onde o desprezo às regras do jogo democrático parece não ser problema, não faltará quem diga que essa postura signifique justiça e que a Súmula 534 contenha um “grande avanço”. Prefiro entender decisões assim como mero exercício arbitrário de poder… de um poder apequenado, esvaziado de conteúdo e de sentido.
Haroldo Caetano da Silva é promotor de justiça, mestre em Direito pela Universidade Federal de Goiás e doutorando em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense.
*Artigo originalmente publicado no Site Justificando.
CITAÇÕES NO TEXTO
[1] Conforme previsão do art. 57, parágrafo único, da LEP.
[2] A regressão por falta grave é regulada no art. 118, inciso I, da LEP.
[3] O art. 127 da LEP prevê a revogação de até um terço do tempo remido.
[4] Para não perder o foco em relação ao tema proposto, deixo de aqui tecer considerações acerca da inconstitucionalidade (a meu ver manifesta) do regime disciplinar diferenciado.
[5] Segundo a norma administrativa que rege a matéria nos presídios do Estado de Goiás, a reclassificação do comportamento carcerário, de “mau” para “bom”, pressupõe pelo menos seis meses sem ocorrência de nova falta disciplinar.
[6] Regramento disciplinar também aplicável aos prisioneiros dos demais regimes.
[7] O uso de aparelho telefônico, de rádio ou similar constitui falta expressamente prevista no art. 50, inciso VII, da LEP.
[8] Conforme disposição do art. 58, caput, da LEP.
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