A Pastoral Carcerária Nacional realizou um novo questionário neste ano de 2021, um ano após o início da pandemia do coronavírus, para ter maior compreensão da situação dos presídios em meio à enfermidade pandêmica.
A metodologia buscou valorizar informações colhidas entre familiares de pessoas presas, agentes pastorais, servidores do sistema prisional, dentre outros, pois estão ou estiveram em contato direto com as principais vítimas da pandemia no sistema carcerário brasileiro: as pessoas privadas de liberdade. É a narrativa das próprias pessoas presas que se espera traduzir na divulgação destes dados.
O questionário foi lançado no dia 11 de março, e foram recebidas 620 respostas em uma semana. Além das informações, as pessoas que responderam enviaram uma série de relatos sobre as diversas dificuldades que vêm sendo enfrentadas.
Dessas respostas, 336 (54,2%) foram de familiares de pessoas presas, e 176 (28,4%) de agentes da Pastoral.
Os estados com mais respostas foram RS, SP, GO, PR e MT; todos os estados responderam, com exceção de Tocantins e Sergipe
Em relação às visitas após a pandemia, 73,8% das respostas disseram que as visitas não foram liberadas, 11,8% disse que foram liberadas, 12,2% disse que foi liberada apenas para familiares e 2,1% disse que foi liberada apenas para visita religiosa.
Sobre o material de higiene e alimentos enviado aos presos pelas famílias, 58,8% das pessoas disseram que materiais de higiene e alimentos enviados para as famílias aos presos estão entrando, 20,8%% disse que não e 20,5% não soube responder.
Acesso à Informação
Em relação à obtenção de informações, 27,8% disse obter informações por meio da administração penitenciária, 29% disse que a Administração não fornece informações, 12% afirma obter informações por meio de organizações de direitos humanos e/ou familiares, e 28,8% diz conseguir se comunicar com a pessoa presa através de videochamada, carta ou e-mail.
Grande parte dos relatos recebidos diz que a comunicação com a pessoa presa, neste período de pandemia, é péssima, com os familiares passando muito tempo sem notícias. Da mesma forma, os encontros virtuais são curtos e as pessoas presas não podem falar livremente sobre o que ocorre na prisão, pois são vigiados por agentes. As unidades tampouco informam aos familiares o que está acontecendo lá dentro e como a pessoa presa está caso esta tenha sido infectada.
“[A comunicação é] horrível, meu marido teve covid, liguei na unidade e não me informaram nada. Ele estava sem receber remédio e alimentação”
“A cada dia mais eles delimitam o retorno. Vídeo chamada ocorre com presenças de um agente, as cartas que eram semanais diminuíram para uma lauda a cada 15 dias e só tem resposta se alguém escrever para o preso. Vídeo chamadas demoram meses pra ocorrer”.
Sobre se as administrações prisionais têm tomado medidas para impedir o contágio, muitos dos relatos disseram que não; pelo contrário, a principal denúncia recebida nessa questão é a de que muitos servidores sequer usam máscaras, não fornecem informações de prevenção aos presos e, quando fornecem, são informações erradas.
“A maioria dos agentes penitenciários sequer utiliza máscara. Uma das apenadas que represento chegou a dizer a um advogado que ali dentro não existia mais coronavírus, convicta da informação, passada pelas agentes da unidade”
Pessoas presas infectadas com Covid-19 ou que faleceram
56% das pessoas que responderam conhecem alguém com suspeitas ou que tenha contraído o coronavírus na prisão. Os relatos recebidos falam de presos e servidores com o vírus, e também de casos de surtos em algumas unidades, todos não divulgados e nem comunicados aos familiares. 81,3% disse não conhecer alguém que tenha morrido de covid na prisão, e 18,7% disse conhecer.
Os relatos que a PCr recebeu em relação às mortes são vagos, pois a falta de comunicação e informação é latente. Muitas pessoas dizem ter ouvido algo de familiares ou da mídia.
“Meu marido por exemplo bem no começo da pandemia pegou, graças a Deus está bem, e já teve celas de isolamento com muitos presos contagiados pelo vírus”.
“Meu filho e meu marido pegaram, meu filho foi confirmado e meu marido está com suspeita”.
“Muitos pegaram Covid-19. A maioria se curou ali. Agora, quando tudo parecia mais calmo, já estão surgindo novos casos. Preocupante pois a saúde está em colapso e eles são a última prioridade em todos os sentidos”.
Em relação à vacinação, 83% dos que responderam não sabem como está a situação da vacinação. 16% disseram que as pessoas serão vacinadas, e cerca de 1% disse que as pessoas estão sendo vacinadas ou já foram vacinadas.
O massacre continua
No início de abril de 2020, a Pastoral Carcerária Nacional disponibilizou o primeiro questionário para obter mais informações sobre a situação carcerária no país durante o início da pandemia. Em apenas três dias, recebemos cerca de 1213 respostas.
A pesquisa feita no ano passado mostrou que as visitas às prisões estavam proibidas em praticamente todo o país, alertando para o início do processo de fechamento das prisões para a sociedade civil no geral. 1189, ou 98,4% das pessoas afirmaram que não podiam entrar nas prisões.
Em relação a alimentos e materiais de higiene enviados, 793 (65,9%%) afirmaram que estes não estavam entrando, enquanto em 304 (25,2%) a resposta foi positiva. 107 pessoas responderam (8,9%) que não sabiam se a entrada era possível ou não.
Quanto aos casos de suspeita de COVID-19 entre as pessoas presas, 377 (31,35%) das respostas afirmavam que havia, enquanto que 207 (17,2%) alegaram que não. 621 pessoas (51,5%) não sabiam responder se há ou não suspeitas. 245 pessoas (20,4%) afirmaram saber da existência de pessoas no sistema penal com o vírus, enquanto que 222 (18,5%) disseram que não sabiam de casos concretos. Mais uma vez, um grande número de pessoas respondeu não saber: 736, ou 61,2%.
No questionário realizado em 2020, a PCr analisou que o dado mais impressionante era a quantidade de respostas sobre os mais variados temas que diziam não saber: “Isso mostra que as secretarias de administração penitenciária da maioria dos estados não estão sendo transparentes nas medidas que têm tomado para combater a pandemia, deixando a população que necessita dessas informações desamparadas”.
O questionário realizado neste ano mostra que essa situação se consolidou e foi ampliada ao longo de 2020 e neste início de 2021. A falta de informações e a omissão são estratégias de uma política que serve para manter a estrutura torturante do cárcere.
O fato de termos recebido uma quantia muito menor de respostas de um ano para o outro – 1213, comparando com as 620 de agora – já é, por si só, um sinal deste processo. Muitas pessoas entraram em contato com membros da coordenação da PCr nacional diretamente, dizendo que não iriam responder o questionário pela falta completa de informações.
O processo de fechamento do cárcere que ocorreu em 2020 fez com que muitas famílias e entidades ficassem no escuro em relação ao que ocorre no interior da prisão, procedimento que dificulta ainda mais a fiscalização e a cobrança de medidas de enfrentamento à pandemia e à tortura.
As informações que existem – provavelmente imprecisas e subnotificadas por conta desse fechamento dos cárceres, o que nos faz pensar que a situação é muito pior – mostram um cenário muito pior do que no início de 2020.
A pandemia, que era tida como um problema que não afetaria o sistema prisional, de acordo com o Ministro da Justiça que ocupava o cargo à época, se tornou uma doença que ceifa vidas de presos e servidores.
O negacionismo e o obscurantismo se tornaram ainda mais presentes nas vozes das autoridades que operam e engendram o sistema prisional, possibilitando e legitimando a expansão da violência pandêmica no cárcere. O Estado sempre nega a dor vivida pelas pessoas presas e seus familiares, e durante a pandemia não foi diferente. Essa dialética entre negar e agredir faz parte da própria engenharia político-econômica do sistema prisional.
A prevenção é praticamente inexistente, de acordo com os relatos que recebemos; pelo contrário, a contaminação dos presos é usada como uma forma de tortura. A enfermidade se transforma em uma nova arma de violência, responsável pela matança e pelo adoecimento de pessoas negras, pobres e marginalizadas. A pandemia virou mais uma engrenagem de tortura nessa operante máquina de morte que é o cárcere.
Mais do que desenvolver uma nova arma de violência e atacar os pulmões e as vidas das pessoas encarceradas, mediante, principalmente, tortura respiratória, o Estado escolheu também sufocar as vozes e os gritos dolorosos e desesperados das pessoas que sobrevivem nesses espaços claustrofóbicos. O impacto disso foi uma onda sangrenta de subnotificação, de silêncio, de adoecimento e de morte.
Os dados e os relatos que recebemos em 2021 revelam a letalidade da pandemia no cárcere, e a inércia proposital por parte do governo e das administrações penitenciárias, que causa mais este massacre nos presídios. E como em todos os outros, é um massacre planejado, anunciado, silencioso e evitável.
Povos originários em privação de liberdade durante a pandemia
Em razão da invisibilidade e da falta de dados sobre a população indígena privada de liberdade, a Pastoral Carcerária Nacional, em parceria com o Instituto das Irmãs da Santa Cruz (IISC) e o Conselho Indigenista Missionário (CIMI), irá também apresentar uma sequência de informações levantadas, em pesquisa empreendida por meio das plataformas de acesso à informações públicas dos estados brasileiros.
Segundo este levantamento realizado no segundo semestre de 2020, o total de pessoas indígenas privadas de liberdade no Brasil era de 1.229, sendo que os sistemas de informação registraram que 1156 seriam homens e 73 mulheres – estes dados referem-se a 23 estados e DF, uma vez que os estados do Acre, Bahia e Tocantins não apresentaram suas respostas no prazo legal.
Este número aponta para um aumento de 13% na população indígena presa no Brasil, em relação ao mesmo levantamento do CIMI e IISC empreendido no ano de 2019, ou seja, a pesquisa indica que a pandemia também não repercutiu em medidas desencarceradoras para os povos originários privados de liberdade no Brasil.
Foi identificado que os 5 estados que mais encarceram pessoas indígenas no Brasil, são: Rio Grande do Sul (382 pessoas), Mato Grosso do Sul (374 pessoas), Roraima (182 pessoas), Ceará (67 pessoas) e Pernambuco (32 pessoas).
Ainda, as entidades também questionaram as gestões prisionais dos estados a respeito da contaminação por COVID-19 entre pessoas indígenas privadas de liberdade. Ao todo foram observados 7 estados que informaram casos de contaminação: Amazonas, Amapá, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Rondônia e Roraima.
Os dois estados mais alarmantes e não coincidentemente estão entre os três que mais aprisionam indígenas no país foram: Mato Grosso do Sul e Roraima.
No MS, apenas um único estabelecimento penal do estado, a Penitenciária Estadual de Dourados, foram registrados 85 casos de contaminação entre homens indígenas. Foi apurado que o total de homens indígenas presos nesta unidade era de 163 – ou seja, pelo menos a metade dos homens indígenas privados de suas liberdades nesta unidade foram contaminados pela COVID-19.
Já em Roraima, não foi especificado quantos homens indígenas foram contaminados pela doença, apenas que os casos foram tratados dentro das unidades prisionais, com exceção de um homem que faleceu no mês de agosto de 2020 e que constou em sua certidão de óbito a causa da morte como “insuficiência respiratória aguda; pneumonia por COVID-19”. Já entre as mulheres, em uma só unidade prisional que custodiava 14 mulheres indígenas, metade delas testou positivo para a doença, passaram por tratamento dentro da própria unidade e encontram-se aparentemente recuperadas.
É importante dizer que as lutas pela terra, as omissões do governo brasileiro em garantir as demarcações e a ausência de políticas públicas básicas para pessoas e comunidades indígenas são fatores que contribuem para a inserção destas pessoas nas malhas do sistema de justiça criminal brasileiro.
Estas breves informações acerca do encarceramento dos povos originários no Brasil nos dão pistas que precisamos seguir monitorando e investigando, já que a realidade é de grande subnotificação sobre as condições do aprisionamento destas pessoas e dos reflexos nos povos e comunidades a que pertencem, de forma que a identificação pode ser um primeiro passo para buscar que medidas desencarceradoras efetivas e em larga escala que cheguem até essa população – uma ação de proteção à vida e à saúde em meio ao grave cenário da COVID-19.