A tortura é o próprio ambiente de privação de liberdade, o próprio ambiente do jeito que ele está estabelecido hoje, a arquitetura prisional do jeito que está estabelecido hoje por si só já é uma tortura. O isolamento total do meio social do apenado é uma tortura. É uma tortura quando você olha pra televisão e nota o avanço da tecnologia do mundo externo enquanto lá dentro continua pré histórico, continua medieval (…) E ai vem todas as outras questões à reboque né, que é insalubridade, alimentação precária, a violação ao direito à visita, e a violação aos familiares, o tratamento indigno por parte dos agentes. Isso tudo contextualiza com esse ambiente e cria o ambiente de tortura (Acervo da Subcomissão da Verdade na Democracia. Testemunho de João Luis Francisco da Silva — integrante do coletivo EuSouEu, reflexos de uma vida na prisão — , concedido em 22/05/2018).
A tortura psicológica tem a ver também em você não se sentir parte, você não se sentir ser humano. E ali (na prisão) as pessoas trans e LGBTs não tem a possibilidade de se sentirem humanos. (Acervo da Subcomissão da Verdade na Democracia. Testemunho de Alessandra Ramos Makkeda, concedido em 18/04/2018)
As engrenagens racistas, classistas, heterocissexistas e machistas que organizam e sustentam o sistema prisional geram e mantêm um ambiente de tortura que perpassou por sua história desde sua gênese no final do século XIX. A naturalização dessa nos espaços de privação de liberdade, nos remete a pergunta do por que não conseguimos, através dos organismos internacionais de defesa dos direitos humanos, a confirmação do óbvio: a declaração que o sistema prisional brasileiro configura tortura estrutural pelas condições degradantes que impõem aos privados e privadas de liberdade?
Por que celas superlotadas, no meio de esgoto, ausência de água, comida insuficiente e de má qualidade, temperaturas extremas, privação de sono e ocasionais penas de isolamento solitário, inacessibilidade a saúde, dentre tantas outras violências, não são automaticamente conectadas como violações sistemáticas que remetem a tratamentos degradantes e cruéis passíveis do título de tortura?
A partir dessa inquietação, buscamos desenvolver uma análise das limitações dos conceitos de tortura vigentes no plano internacional, ancorados nas definições de tortura formuladas por quem vivenciou – e ainda vive os reflexos – do sistema prisional: sobreviventes do sistema e seus familiares. Os conceitos cunhados a partir da realidade nos possibilitam verificar as limitações dos padrões normativos do DIDH, tornando possível a discussão sobre a dificuldade de ruptura com a matriz colonial que engendra o encarceramento e o direito penal, se valendo desses como dispositivos capazes de realimentar as forças estruturais que sustentam o nível agudo de injustiças presentes no capitalismo à brasileira.
A história narrada por aqueles e aquelas que vivenciaram esse extremo das violações de direitos humanos torna-se o norte deste artigo, na busca de subverter a versão hegemônica que teima em tentar concretizar uma história na qual prisão poderia cumprir um papel distinto do que a perpetuação da violência da colonização. A prisão não tem seu curso desviado, a prisão foi feita e é mantida para uma segregação brutalizante de uma parcela da população.
O cotidiano prisional é tortura
Nas unidades prisionais da Secretaria de Estado de Administração Penitenciária do Rio de Janeiro (SEAP), os internos lidam com a falta de artigos de primeira necessidade, o que gera péssimas condições de vida, violando o direito à dignidade humana dos presos e das presas, forçando-os a viver situações humilhantes e a conviver em locais extremamente insalubres e marcados pela proliferação de doenças de pele e infectocontagiosas:
Existem presos que já vivem de forma sub-humana; Vivem de forma caótica mesmo, não tem roupa, se não tiver uma rede de apoio entre os presos para suprir as necessidades básicas de higiene o estado não fornece. Algumas instituições religiosas fazem doações mesmo assim não dá conta é essa rede de apoio que impede que a miséria efetiva venha detonar e explodir o sistema .(Acervo da Subcomissão da Verdade na Democracia. Testemunho de Cristiano Silva de Oliveira — integrante do coletivo EuSouEu, reflexos de uma vida na prisão –, concedido em 04/05/2018).
A dificuldade de material higiênico nas unidades prisionais é uma realidade; você entrar em um banheiro que se chama boi, defecar em um buraco de cano, a água cair duas vezes no dia, a alimentação vir estragada várias vezes na semana. Os gatos e cachorros que tiravam a cadeia conosco sinalizavam a qualidade da brilhosa (quentinha servida) colocávamos primeiro para eles , era o modo de sabermos se a comida estava comível ou não. (Acervo da Subcomissão da Verdade na Democracia. Testemunho de Cristiano Silva de Oliveira — integrante do coletivo EuSouEu, reflexos de uma vida na prisão –, concedido em 04/05/2018).
As famílias buscam suprir a ausência de artigos de primeira necessidade, levando no momento da custódia sabonetes, remédios, roupas, escovas de dente, e todos os outros itens fundamentais para estabelecer uma vida minimamente digna, quando esse direito não é arbitrariamente limitado pelas direções das unidades[1].
É necessário lembrar, entretanto, que nem todos os presos têm familiares que conseguem arcar com os artigos necessários para a sua sobrevivência dentro do sistema, e dependem de outros presos para poder acessar materiais básicos, caso contrário simplesmente não têm acesso a nenhum item básico. Além disso, nas unidades conhecidas como “porta de entrada” os internos não podem receber visita familiar, essa somente será permitida depois da transferência para outra unidade, o que nem sempre ocorre em tempo razoável. Por isso, nesse período eles não podem receber de suas famílias aquilo que o Estado deveria lhes garantir.
O sistema prisional também é marcado pela alimentação de péssima qualidade servida aos internos, o que provoca danos à saúde dos presos e os deixa mais propensos a contraírem doenças frente a insalubridade do ambiente carcerário. Não pode ser deixado de lado que na esmagadora maioria de casos esses alimentos são fornecidos por empresas privadas que ganham licitações para prestação de serviço do Estado, o que ao invés de aprimorar o cumprimento da pena, tem feito com que essa se torne ainda mais hostil, demonstrando ainda o quão falacioso é o argumento de que lucro e prisões podem gerar qualquer coisa distinta do que o agravamento da condição dos privados e privadas de liberdade.
As condições do sistema são extremamente cruéis e implicam em uma violência constante. Para além da má qualidade dos alimentos e da comida, muitas vezes, ser servida estragada ou má cozida, há casos de internos que já encontraram objetos dentro de suas quentinhas.
O acesso à água também é precário nas unidades prisionais:
Nas unidades prisionais administradas pela SEAP a água é ainda mais racionada, os agentes estabelecem três horários para que a água seja ligada e o preso é obrigado a estocar certa quantidade de água para o seu uso, o preso muita vezes tem que fazer as suas necessidades com dois litros d’água, tomar banho com dois litros d’água que ele consegue estocar numa garrafa PET (Acervo da Subcomissão da Verdade na Democracia. Testemunho de João Luis Francisco da Silva — integrante do coletivo EuSouEu, reflexos de uma vida na prisão –, concedido em 22/05/2018).
As condições das unidades prisionais somadas ao descaso da administração penitenciária em garantir o tratamento dos presos doentes, possibilita um ambiente que significa, para muitos internos, a decretação velada de uma pena de morte, perpetuando assim a lógica necropolítica[2] do sistema carcerário:
Eles promovem a morte o tempo todo dentro das unidades prisionais. São presos doentes, contaminados, com HIV que não são tratados da forma devida, que não tem assistência de saúde (…). E outra forma de tortura estrutural são as UPAs dentro das unidades prisionais. A UPAs é sinônimo de morte, isso induz o preso a preferir ficar na cela do que ir a UPAs (…) Ficávamos tensos e preocupados em adoecer pois sabíamos que poderia ser a nossa sentença de morte .(Acervo da Subcomissão da Verdade na Democracia. Testemunho de Cristiano Silva de Oliveira — integrante do coletivo EuSouEu, reflexos de uma vida na prisão –, concedido em 04/05/2018).
Fica nítido que a tortura é estrutural e sistemática nos espaços de privação de liberdade brasileiros , na medida em que a violência/terror está presente em todos os momentos do cotidiano de uma pessoa presa criando danos tanto físicos, quanto psíquicos advindo do trauma expresso pelo encarceramento que podem acompanhá-los por toda a sua vida. Nesse sentido, as memórias aqui compartilhadas e as definições de tortura apresentadas, a partir da realidade, buscam fazer refletir sobre as limitações do conceito de tortura do DIDH para lidar com a realidade carcerária do Rio de Janeiro.
Tortura Estrutural x Conceito Individual
O conceito de tortura, no âmbito internacional, está intimamente ligado ao conceito de tratamento cruel, desumano ou degradante. A diferenciação entre eles é uma discussão complexa e sem uma definição única e rígida no DIDH. A distinção jurídica entre os dois termos gera resultados políticos e práticos distintos, uma vez que a caracterização de uma prática como tortura implica uma maior responsabilização do Estado, sendo tortura um crime imprescritível e sujeito à jurisdição universal[3].
Autores do campo do DIDH buscam definir quais são os critérios para a distinção dos conceitos a partir da análise de jurisprudências e normas dos sistemas internacionais de proteção aos direitos humanos. De forma concisa, cabe aqui apresentar os dois critérios que prevalecem no âmbito internacional para a definição do termo, de acordo com as formulações de Rodley e De Vos[4]: (i) o propósito da conduta e o (ii) status do perpetrador, ou seja, se esse agente é ou não parte da estrutura do Estado, direta ou indiretamente.
Podemos entender que o primeiro requisito, que analisa a intencionalidade do agente, serve para afastar as violências estruturais da definição de tortura. Esse requisito permite que os operadores do direito pensem através de uma lógica individualizante da violação, deixando de fora todas as questões estruturais que operam para essa ocorra, assim se mantém os privilégios que uns usufruem às custas da violência constante contra outros. Assim, percebemos como os ordenamentos jurídicos ditos de proteção aos direitos humanos podem operar de modo a não computar a violência sobre certos os corpos, não computando a tortura estrutural que forja o sistema carcerário.
Ana Luiza Flauzina, em trabalho sobre o processo de ratificação da Convenção contra o Genocídio nos EUA denuncia que “a insistência em parâmetros escritos para a configuração do dolo genocida está ligado ao desejo de garantir não apenas os padrões mais óbvios de impunidade, mas também de resguardar a conotação simbólica do delito num processo historicamente marcado pelas demandas da supremacia branca”[5]. Podemos transpor essa crítica para o contexto das discussões sobre o conceito de tortura no plano internacional, e perceber que a insistência na identificação da intencionalidade do agente e uso de características muito específicas para sua definição possui objetivos similares aos desvelados por Flauzina[6].
A generalização da experiência singular do homem dos direitos humanos universais – o homem branco, cis, heterossexual e proprietário – cria um conceito que não se encaixa nas diversas realidade existentes. Thula Pires[7] diagnostica que:
A defesa de uma igualdade formal, que sacraliza a meritocracia em uma sociedade racialmente estratificada, só pode ser atribuída a tentativa de manter a supremacia branca e o sistema de privilégios (SHUCMAN, 2012) que essa condição promove.
Os conceitos de tortura utilizados no DIDH não abarcam a complexidade das violações de direitos cotidianas no sistema carcerário fluminense. As insuficiências e a seletividade dos parâmetros normativos estão calcadas nos padrões da branquidade, do machismo e das demais opressões estruturais da sociedade, que forjam o direito e através dele se perpetuam. Thula Pires[8] diagnostica que:
A eficiência da crença na universalidade e neutralidade dos direitos humanos, aliada no contexto pátrio com o compartilhamento do mito da democracia racial promoveu a ineficiência de sua utilização para promover o enfrentamento das desigualdades raciais, de gênero, sexualidade e deficiência.
Por sua vez, Alessandra Makkeda, defensora dos direitos humanos, ativista trans e sobrevivente do sistema prisional afirma que Lá (na prisão) eu aprendi que o racismo existe, que ele é sistêmico estrutural, estruturado e estruturante e que que ele tá dentro do sistema: incorporado nas práticas jurídicas, que está incorporado nas práticas sociais diárias e que ele também é faz parte da lógica do sistema penitenciário, assim como ele fazia parte da lógica da hierarquia da beleza na prostituição, ele também faz parte da lógica da hierarquia dos maus-tratos e tortura e do desrespeito aos direitos humanos e da falta de humanidade da prisão (Acervo da Subcomissão da Verdade na Democracia. Testemunho de Alessandra Ramos Makkeda, concedido em 18/04/2018).
Assim, podemos refletir que a definição de tortura do DIDH, formulada a partir de falsas noções de universalidade e neutralidade, necessita de uma reformulação conceitual, partindo do ponto de vista daqueles e daquelas que vivenciam o sistema carcerário para que se enfrente o sistema de privilégios que é forjado a partir das opressões sociais que são a gênese da questão prisional no país.
Alessandra Ramos Makkeda é graduanda em Produção Cultural pelo IFRJ, Presidente do Instituto Trans-Formar.
Cristiano Silva de Oliveira é Integrante do coletivo Eu Sou Eu – reflexos de uma vida na prisão, Sobrevivente do sistema prisional, Coordenador do Projeto Lute para Viver.
João Luis Francisco da Silva é graduando em Direito pela Estácio, Integrante do Coletivo Eu Sou Eu – reflexos de uma vida na prisão, Sobrevivente do sistema prisional, articulador social da ONG Rio de Paz.
Natalia Damazio Pinto Ferreira é doutoranda em Direito Constitucional e Teoria do Estado na PUC-Rio, Mestre em Teoria e Filosofia do Direito pela UERJ.
Nina Castro Adeodato Barrouin e Mello é graduanda em Direito pela PUC Rio, Pesquisadora PIBIC.