A Irmã Petra Silvia, coordenadora nacional da Pastoral Carcerária, participou nesta quarta-feira (13) de audiência pública Pessoas em situação de prisão e enfrentamento à tortura, organizada pela Defensoria Pública da União (DPU). Outras organizações, como ITTC, Justiça Global, Ouvidoria das Defensorias Públicas, MNPCT, MEPCT/RJ, Rede e Movimento de Combate à Violência (RJ), Frente Estadual pelo Desencarceramento (AM) e (CE), Conectas, APIB, DEPEN, Amparar e Associação Elas Existem Mulheres Encarceradas também estavam presentes.
Em sua fala, Irmã Petra disse que para enfrentar e erradicar a tortura, a única forma é desencarcerar. “Por isso, não podemos restringir o conceito de tortura apenas às situações onde haja agressão física ou psicológica contra as pessoas presas. A tortura é estrutural, difusa e perene, fazendo parte da engrenagem de funcionamento do cárcere, alcançando também a falta de direito à saúde, a falta de ar e de espaço derivada da superlotação, a falta de colchões, medicamentos, alimentação, de água, pois tudo isso também produz dor e sofrimento intenso em suas vítimas, além de produzir sequelas para a vida inteira”.
Confira abaixo a fala inteira da coordenadora durante a audiência:
Boa tarde a todas pessoas presentes, é uma honra e alegria estar aqui com vocês para falar desse tema tão importante e necessário.
É impossível separar pessoas em situação de prisão de pessoas sendo torturadas, pois a prisão pressupõe a tortura. Por isso, logo de início, afirmo: para enfrentar e erradicar a tortura no sistema penitenciário, não há outro caminho – é preciso acabar com as prisões e começar desencarcerar já.
A trajetória para alcançar esse horizonte é árdua e penosa, pois temos que ter consciência de que estaremos enfrentando o Estado: essa instituição burguesa extremamente armada, militarizada, seletiva e treinada pela lógica do combate, composta por agentes também doutrinados pela caça e pelo massacre das pessoas taxadas como inimigas.
A tortura é a principal ferramenta, é a principal arma utilizada pelo Estado para produzir dor e sofrimento nas pessoas previamente selecionadas pela cor, identidade de gênero, território e classe, aplicando-a como tática de dominação e de extermínio.
Muitas vezes, quando falamos de tortura, pensamos nas técnicas usadas em ditaduras – empalamento, pau de arara, cadeira de choque, entre outras. Mas no sistema prisional, além das agressões físicas, precisamos nos atentar à tortura que é estar confinado em celas que abrigam 50 pessoas onde caberiam 10, em espaços sem ventilação, em lugares cuja comida é cheia de pedaços de vidro e fezes de animais. É estar confinada em uma unidade longe da sua família e sem saber sob os cuidados de quem o seu filho está.
Por isso, não podemos restringir o conceito de tortura apenas às situações onde haja agressão física ou psicológica contra as pessoas presas. A tortura é estrutural, difusa e perene, fazendo parte da engrenagem de funcionamento do cárcere, alcançando também a falta de direito à saúde, a falta de ar e de espaço derivada da superlotação, a falta de colchões, medicamentos, alimentação, de água, pois tudo isso também produz dor e sofrimento intenso em suas vítimas, além de produzir sequelas para a vida inteira.
Amostra dessa realidade torturante é levantada pela Pastoral Carcerária Nacional desde sempre, pois faz parte da sua missão: Evangelizar e promover a dignidade humana. Segundo nosso banco de dados, de janeiro de 2016 a agosto de 2018, foram abertos 132 casos envolvendo diversas espécies de tortura. Nos dois anos posteriores, de agosto de 2018 a dezembro de 2020, foram abertos 234 casos. Esses números mostram um aumento de mais de 77% nos casos de tortura recebidos pela Pastoral nos últimos 2 anos.
Quanto ao conteúdo das denúncias, dos 234 casos de tortura recebidos pela Pastoral nestes últimos 2 anos, 148 casos abordaram agressões físicas; 131 envolveram negligência na prestação de assistência à saúde; 115 são negligência na prestação de assistência material — Sobre a atuação das autoridades diante dos casos denunciados pela Pastoral Carcerária Nacional, espanta-se que em 45 casos (23%) não se obteve qualquer resposta. Este número reflete a política institucionalizada de manutenção da tortura no cárcere e a desídia que autoridades insistem em tratar as denúncias oriundas do sistema prisional. O que está institucionalizado não é só o “deixar morrer”, mas também o “fazer morrer”, a partir do descaso com as denúncias de tortura oriundas do sistema prisional.
A Pastoral realizou pesquisas a respeito dos casos de denúncias recebidas, que estão disponíveis online, bem como a pesquisa sobre as restrições no acesso ao cárcere perante a prestação da assistência religiosa.
Todas essas espécies de tortura estão presentes estruturalmente no cárcere, fazendo parte de seu alicerce e de sua base. Por isso, para tentar reduzir os danos provocados intrinsecamente pelo encarceramento, para tentar reduzir a violência torturante que lá existe, é preciso se fazer cada vez mais presente fisicamente no interior das unidades prisionais, para sentir a dor que a cadeia produz nas pessoas encarceradas e até mesmo nos servidores que trabalham no cárcere, sentir o cheiro da cadeia, com o objetivo de controlar e responsabilizar os atos praticados pelos agentes estatais. Não há lugar para inspeções virtuais ou audiências de custódia virtuais, isso não existe, não é possível ver e sentir o sofrimento produzido pelo cárcere sentado na poltrona confortável do gabinete com ar condicionado. E para aqueles que acreditam ser possível, é evidente que não querem enfrentar a realidade porque dar canetada é muito mais fácil.
Enquanto isso, o fechamento do cárcere para nós, sociedade civil, e também para as instituições estatais responsáveis pelo monitoramento carcerário, como a DPU e os Mecanismos Nacionais e Estaduais, revela um verdadeiro projeto de segregação da população preta, jovem, pobre e periférica, que é o alvo do sistema prisional. Para reduzir os danos do encarceramento, a sociedade deveria estar nos presídios, pois é com as familiares e os agentes da pastoral que os presos e as presas se sentem à vontade para detalhar o espaço horrível em que vivem. Nos tirar dali é permitir que violações de direitos das pessoas presas continuem acontecendo, sem ninguém para pedir socorro por elas aqui fora.
Por isso, é importante unir a atuação dos órgãos institucionais à sociedade civil, sobretudo às familiares de pessoas presas e instituições que adentram o cárcere para tentar dar dignidade à vivência daqueles que estão presos ali. Falamos isso porque no nosso dia a dia, recebendo denúncias de tortura de unidades de todo o país é extremamente comum que os órgãos da execução penal, responsáveis por fiscalizar os estabelecimentos prisionais, como é o DEPEN, só peçam informações à direção, sem sequer indagar aos presos e presas sobre a situação relatada pela Pastoral.
Oras, como é possível apurar uma denúncia de tortura ouvindo apenas a versão dos fatos feita pelos possíveis algozes? Apenas junto à sociedade civil, ouvindo a realidade da população privada de liberdade, é possível pensar em estratégias de combate e prevenção à tortura. O documento da Agenda Nacional pelo Desencarceramento, no ponto 7, coloca a necessidade de abrir o cárcere e criar mecanismos de controle popular. A Agenda Nacional como movimento, coloca o protagonismo das familiares de pessoas presas como forma de combate à tortura.
Porque quando centramos as políticas públicas apenas no campo institucional do Estado, permanecemos com esse estado de coisas inconstitucional. Se em 2019 o número de presos no Ceará diminuiu, como disse o representante do Depen, no mesmo ano tivemos diversas mortes nas unidades do estado no começo do ano, principalmente causadas pela presença da FTIP, pois o estado não seguiu as recomendações feitas por entidades da sociedade civil e pelo Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate a Tortura 10 meses antes.
Para que o Estado recue, ande para trás e tenha freado todo seu maquinário de violência, é imprescindível que o cárcere esteja irrestritamente aberto também à presença física das famílias, dos agentes religiosos e dos Mecanismos Nacionais e Estaduais de Prevenção e Combate à Tortura. É durante uma visita da Pastoral Carcerária, por exemplo, em momento de partilha e de escuta ativa, que vão surgindo – muitas vezes espontaneamente – relatos de tortura por parte dos presos e das presas. A visita familiar, no mesmo sentido, permite que a pessoa presa compartilhe com seus entes as mazelas de seu cotidiano. É principalmente nesse contato que o elo entre a pessoa privada de liberdade e a sua família se conecta – tanto com as notícias trazidas de fora, quanto com os relatos da vivência de dentro.
Por tudo que expus para vocês, volto ao início da minha fala: não há prisão sem tortura. E para combatê-la, é preciso começar com a ideia de um mundo sem cárceres e começar desde já colocar em prática a política de desencarceramento.
A Agenda Nacional pelo Desencarceramento proclama diversas políticas necessárias e fundamentais para se alcançar um mundo sem prisões, tais como a proibição de qualquer construção de novas unidades prisionais, o fim das prisões provisórias, a legalização das drogas, a criação e a consolidação dos mecanismos de controle populares, a proibição da privatização do sistema prisional, o desinvestimento nas polícias e no sistema penal como um todo, dentre outras medidas. Só assim caminharemos rumo ao mundo sem cárceres e o fim da tortura.