Irmã Petra: juiz de garantias é necessário, mas não é suficiente para garantir a diminuição do encarceramento no Brasil

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A Irmã Petra Silvia, coordenadora nacional da Pastoral Carcerária, participou nesta terça-feira (26) de audiência pública no Supremo Tribunal Federal (STF) que debateu a implementação do juiz de garantias. A coordenadora da PCr defendeu a implantação, mas de forma crítica.

“A Pastoral Carcerária posiciona-se em defesa do instituto do Juiz de Garantias, por dimensionar que este aproxima o processo penal do modelo acusatório previsto na Constituição Federal, mas sem deixar de fazê-lo de forma crítica, por também entender que o sistema penal, como um todo, opera sob lentes enviesadas, e enquanto assim permanecer, os avanços para alguns serão sempre retrocessos para muitos”.

 Confira abaixo a fala completa de Irmã Petra na audiência:

Boa tarde, Excelentíssimo Senhor Ministro Luiz Fux, presidente desta Suprema Corte, boa tarde a todas e todos presentes e ouvintes. Sou Irmã Petra, Coordenadora Nacional da Pastoral Carcerária, que esta ligada a CNBB nacional, fazendo parte da comissão social-transformadora, exercendo a presença religiosa no cárcere e atuando com incidências políticas e sendo a voz daquele que não tem a oportunidade de ser ouvida hoje, as milhares de pessoas presas no Brasil. Agradeço a oportunidade de falar neste foro sob o tema da figura institucional do Juiz de Garantias. 

Em primeiro lugar, dando continuidade ao que foi falado pelas entidades que vieram antes de mim, especialmente os coletivos das famílias, a pastoral não tem dúvida sobre a constitucionalidade da figura do Juiz de Garantias, e afirma que a presença do Judiciário no âmbito da investigação criminal, separado do Judiciário presente na instrução processual e no julgamento. 

A Pastoral Carcerária monitora, diariamente, inúmeros casos e processos sobre as violências estatais praticadas contra a população carcerária, alimentando, ainda, um banco de dados que mapeia a realidade torturante nas prisões nacionais. Na maioria dos casos recebemos denúncias de pessoas que foram agredidas e violentadas pelos policiais durante a captura, ou durante a permanência nos cárceres. Dos 473 casos ativos de tortura que a Pastoral monitora atualmente, cerca de 93 (19,6%) deles ocorreram em unidades prisionais destinadas ao encarceamento de pessoas presas provisórias. 

Durante todo esse percurso torturante, a Pastoral se faz presente, sempre denunciando as ilegalidades advindas da prisão provisória, problema esse que precisa ser enfrentado e superado. Mais de 45% do número total de pessoas aprisionadas no país são provisórias. Em alguns estados, como em Alagoas, Amazonas, Amapá, Goiás, Rio de Janeiro e Sergipe, esse número ultrapassa a marca dos 60%. Esse cenário já evidencia toda violência procedimental existente no ordenamento jurídico brasileiro. 

Para determinadas pessoas – previamente selecionadas pela cor, idade, território residencial, gênero ou classe – a taxa de aprisionamento é exponencialmente elevada. Essas pessoas são capturadas e jogadas para o interior das prisões sem qualquer obediência à presunção de inocência. Ficções argumentativas como “ordem pública” ou “ordem econômica” ou “elevado perigo” foram criadas e desenvolvidas pelo ordenamento e acolhidas pelo judiciário para dar força e legitimidade à arbitrariedade racista do sistema penal. É com base nessas ferramentas institucionais que se prende provisoriamente as pessoas atualmente, alcançando esse patamar assustador e horrendo. 

A Pastoral Carcerária posiciona-se em defesa do instituto do Juiz de Garantias, por dimensionar que este aproxima o processo penal do modelo acusatório previsto na Constituição Federal, mas sem deixar de fazê-lo de forma crítica, por também entender que o sistema penal, como um todo, opera sob lentes enviesadas, e enquanto assim permanecer, os avanços para alguns serão sempre retrocessos para muitos. O instituto de Juiz de Garantias, se implantado corretamente, se apresenta:

  1. primeiro, como uma tentativa de frear toda a violência produzida pela investigação penal, para garantir que o curso do inquérito atente-se aos direitos individuais dos investigados, de forma que não sejam violados. 
  2. segundo, busca-se impedir a indevida e indesejável cumulação das funções de garantia e de julgamento, pois o juiz que analisa a absolvição não participa da investigação criminal, não produz prova por iniciativa própria e tampouco fundamenta condenação com elementos de convicção obtidos sem contraditório judicial e com as particularidades de cada caso.
  3. Em terceiro lugar, busca-se impedir a contaminação psicológica do “julgador” com a condenação, já que a cognição no âmbito investigativo é sumária e direcionada para a instrução do Ministério Público no momento de denunciar. 
  4. Em quarto lugar, diante da grande quantidade de homens e mulheres presos no cárcere, um juiz de garantias atuando na fase inquisitorial permite um maior contato do judiciário com a situação ilegal e inconstitucional destas  pessoas encarceradas
  5. Em quinto e último lugar, esse mesmo juiz de garantias, ao atuar exclusivamente no âmbito do inquérito, poderá ter maiores condições de evitar determinadas provas ilícitas e violações de direitos, como busca e apreensão em residências, acesso ao conteúdo dos celulares dos investigados, flagrante forjado ou provocado, dentre outras atrocidades probatórias que a polícia e o Ministério Público muitas vezes acabam cometendo sob a chancela de um inquérito inquisitorial.

Contudo, é imperioso destacar que a implantação do instituto, por si só, não é suficiente para garantir a diminuição do encarceramento no Brasil. Se partirmos da premissa que o sistema penal é seletivo os operadores desse sistema também são seletivos. Juízes continuam e continuarão punindo apenas parcela do tecido social, sob as lentes do racismo, do machismo e do classicismo. 

Assim, as prisões provisórias e as provas colhidas no inquérito continuarão sendo decididas por juízes seletivos e punitivos, só que agora com o rótulo de “juízes de garantias”. Se o instituto não for monitorado e aperfeiçoado, a tendência é a manutenção do índice de encarceramento em massa, pois os juízes utilizarão das mesmas aberrações jurídicas para determinar e expedir uma ordem de prisão. Isso mostra que o judiciário é punitivista e tem resistência em adotar medidas de desencarceramento. 

É o caso por exemplo do Habeas Corpus 143.641, impetrado pela DPU, para a substituição da prisão preventiva para a prisão domiciliar às mães com filhos menores de 12 anos, gestantes e lactantes, proferida por esta Corte. Segundo dados do Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos, de 468 decisões monocráticas proferidas por Ministros do Supremo, em apenas 73 decisões, 15,5% dos casos, mulheres conquistaram prisão domiciliar. Outras 158 decisões negaram seguimento às ações em decorrência de requisitos formais e 84 decisões indeferiram a aplicação do HC. De 170 decisões que analisaram o caso em si e negaram o habeas corpus, apenas 38 fundamentam-se na existência de violência e grave ameaça. Como se vê, o judiciário insiste em negar o desencarceramento como medida necessária e fundamental para a redução dos danos produzidos pelo próprio encarceramento. 

Não haverá mudança no encarceramento se não existir mudança no próprio judiciário. Se a forma de ingresso e permanência na magistratura não passar por uma radical mudança, sem vivência prática com a realidade que o circunda, maior respeito e aplicação das decisões dos tribunais superiores, que garantem direitos fundamentais, mas não são aplicadas pelos juízes de primeiro grau e sem preocupação com o impacto social de suas decisões, o judiciário continuará punitivista, com ou sem o rótulo de garantias.  

Agradeço mais uma vez pela oportunidade e a Pastoral Carcerária, que está presente em todos os estados e se colocando à disposição.  

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