Inspeção no Case de Luziânia revela que jovens não tem acesso ao banheiro durante o dia

 Em Combate e Prevenção à Tortura, Notícias, Saúde no cárcere

A Defensoria Pública do Estado de Goiás, junto com o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, realizaram inspeções em três unidades prisionais do Estado em novembro de 2020.

O resultado das inspeções no Centro de Atendimento Socioeducativo (CASE) de Luziânia, na unidade regional prisional feminina de Luziânia e na Unidade prisional Especial de Planaltina de Goiás, além de recomendações aos órgãos competentes, constam em relatório divulgado em janeiro pela Defensoria e Mecanismo este ano.

Estrutura da unidade

Como todo e qualquer espaço de privação de liberdade, especialmente aqueles destinados à reclusão de adolescentes, a arquitetura estrutural da unidade de Luziânia é sangrenta, aterrorizante e  cruel, atacando profundamente o art. 94 do Estatuto da Criança e do Adolescente. A inspeção no CASE apontou que obras na unidade não foram concluídas e equipamentos não foram comprados, o que faz com que a estrutura física do local se encontre “bastante desgastada pelo tempo, com marcas de infiltração, ferrugem nas grades, e pelas marcas deixadas pela reforma que não foi concluída, que dá um aspecto degradante, sujo e abandonado. A interdição causada pela reforma não afetou somente os módulos C e D, mas também as salas de uso comuns da equipe técnica e dos agentes, que precisaram ocupar as salas disponíveis de forma improvisada”.

A unidade tem adolescentes e jovens do sexo masculino, com idades entre 12 e 20 anos, em internação provisória e cumprimento de medida socioeducativa de internação. A unidade tinha capacidade para 60 adolescentes, mas após a rebelião de 2017 que interditou dois módulos, a capacidade da unidade passou para 30 adolescentes. No dia da inspeção a unidade contava com 28 adolescentes, sendo três em internação provisória e 25 em cumprimento de medida socioeducativa de internação.

Também chamou a atenção da inspeção a presença de um policial militar como coordenador de segurança, e de policiais militares atuando na porta de entrada do CASE. Essa presença de policiais militares no cotidiano da unidade tem efeitos negativos sobre o processo socioeducativo por trazer uma visão de segurança e disciplina, visto que pode

influenciar as perspectivas de atendimento dos profissionais e o olhar do próprio adolescente sobre sua responsabilização diante a aplicação da medida de internação.

Além disso, os adolescentes e jovens em internação provisória ou em cumprimento de medida socioeducativa não têm acesso ao banheiro durante o dia, recebendo no kit que é entregue a eles quando ingressam na unidade um galão de 5 litros para que façam suas necessidades.

“Durante o dia, quando precisam defecar usam o isopor das marmitas, quando não é possível fazer o deslocamento do adolescente do dormitório ao banheiro no interior do módulo. Além de ser uma prática que produz constrangimento e sofrimento mental para adolescentes internados no CASE de Luziânia, a situação se agrava pela falta de ventilação, não permitindo que odores sejam dispersados e aumentando o mau cheiro no interior dos dormitórios, e pela inexistência de água corrente nos quartos, que impossibilita a higienização corporal e do local após fazer as necessidades fisiológicas. Deve-se enfatizar que a falta de acesso ao banheiro é uma prática cruel, desumana e degradante, visto que os adolescentes são submetidos a uma situação que ataca à dignidade humana e aos princípios previstos no ECA relativos aos direitos fundamentais de crianças e adolescentes”.

O acesso a água também é restrito, com uma rede hidrossanitária antiga e esgoto a céu aberto, e a rede elétrica é precária, sendo comum ver fios soltos e quedas de energia. Também não há qualquer tipo de prevenção contra incêndios, ponto de atenção e que aponta para a possibilidade de mais uma tragédia anunciada, conforme atesta o relatório: “É bastante preocupante a falta de prevenção contra incêndios, haja vista o histórico estadual com incêndios em unidades socioeducativas, que já resultaram em diversas fatalidades como as ocorridas em maio de 2018 no Centro de Internação Provisória (CIP) em Goiânia-GO. Diante de uma situação, que parece recorrente no sistema socioeducativo estadual, os gestores públicos precisam atuar de forma diligente para adequar o ambiente socioeducativo com medidas preventivas, equipamentos dispostos conforme orientação do Corpo de Bombeiros, protocolos de atuação e treinamento profissional para atuar nessas situações emergenciais.”. 

Saúde e alimentação

Em relação à pandemia, a unidade, segundo o documento, “não possui um módulo ou dormitório exclusivo para isolamento quando da identificação de adolescentes suspeitos ou confirmados de contaminação por Covid-19. Os adolescentes ingressantes na unidade fazem o período de quarentena de 14 dias em Anápolis ou Formosa, quando são transferidos para Luziânia. Foi relatado que um adolescente identificado como suspeito de COVID-19 foi isolado de forma inadequada numa das salas do setor administrativo, de forma improvisada”.

A inspeção também constatou irregularidades na alimentação fornecida aos adolescentes e jovens, com alguns alimentos guardados – que foram doações à unidade – que estavam vencidos desde 2017. “A precariedade da alimentação fornecida na unidade, seja pela péssima qualidade e higiene, seja pelo baixo valor nutricional viola o disposto no art. 94, inciso VIII, do ECA e ao direito humano básico à alimentação adequada, em especial o art. 13, parágrafo único, da Resolução nº 14/94 do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária; Regra 22 das Regras de Mandela, Item 37 das Regras de Havana.

Torturas e maus tratos

Em relação à torturas físicas e o uso da força, a inspeção diagnosticou que a presença da PM na unidade, responsável pela guarda do local, é um fator que em si torna o ambiente e a resolução de conflitos violenta. A PM também entrou na unidade em três ocasiões durante 2020.

“Nestas ocasiões foram recorrentes os relatos de constrangimento dos adolescentes sendo colocados apenas de cuecas no pátio em filas, sentados no chão e com as mãos na cabeça (procedimento violador identificado de forma recorrente no sistema prisional), de agressões físicas e verbais, de contenções e manutenção dos adolescentes algemados dentro dos dormitórios e de uso abusivo de armamentos menos letais, como cassetetes, armas de eletrochoque e espargidores durante as intervenções policiais. Assim é possível concluir que essa presença cotidiana da PM retira a responsabilidade dos profissionais da unidade em lidar com as situações de conflito por um viés menos repressivo e punitivo. Nesse sentido, propicia que o uso excessivo da força possa levar à prática de tortura ou outros tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes”.

Também não há para os adolescentes a existência de uma assessoria jurídica. “Pelas entrevistas realizadas, foi possível constatar a inexistência de assistência jurídica aos adolescentes na unidade. Isso impossibilita a concretização de uma série de direitos dos adolescentes, em especial, o direito à informação adequada em relação ao seu processo, bem como o impede a realização de entrevista reservada com o seu defensor, conforme prevê o art. 124, III e IV, do Estatuto da Criança e do Adolescente, dificultando, inclusive, a realização de denúncias quanto a eventuais violações de direitos que ocorram na unidade. 88. Assim, atualmente encontra-se absolutamente cerrado o acesso dos adolescentes à justiça, impossibilitando-se que as mais variadas demandas, relacionadas à saúde, educação, condições de internação e, ainda, garantias e direitos processuais, como pedidos de reavaliações, que necessitem de decisão judicial, possam chegar ao conhecimento órgãos do sistema de justiça”.

Os órgãos fiscalizadores também apontaram a raspagem da cabeça de todos os adolescentes que entram na unidade como uma violação de sua identidade. Por fim, foi registrado a prática da revista vexatória, tanto nos jovens e adolescentes, como em seus familiares. 

“Por fim deve-se destacar a prática de revistas minuciosas, íntimas e vexatórias tanto nos adolescentes quanto nos visitantes, antes das restrições da pandemia e atualmente com o retorno das visitas. Os adolescentes são revistados antes e depois de qualquer movimentação feita fora do módulo, seja para atividade interna ou externa ao CASE. Em ambos casos, a pessoa é obrigada a permanecer totalmente despida e a agachar nus perante servidores do sistema socioeducativo. Tal procedimento, conhecido como revista minuciosa, íntima ou vexatória, configura tratamento cruel, desumano, degradante, violador da intimidade e da honra das pessoas, contrário às disposições do art. 5º, III e X, da Constituição da República Federativa do Brasil, art. 5.2, da Convenção Americana de Direitos Humanos – Pacto de São José da Costa Rica, art. 5º da Convenção Universal dos Direitos Humanos, art. 7º, do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e art. 1º da Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes”. 

Recomendações

Ao final do relatório, a Defensoria e Mecanismo fazem uma série de recomendações aos órgãos competentes para que as irregularidades constatadas nas unidades deixem de existir. Dentre elas, está a imediata proibição da revista vexatória em todas as unidades socioeducativas do Estado, que a reforma no CASE de Luziânia seja realizada, e enquanto ela não for, que a unidade seja interditada e os adolescentes e jovens sejam transferidos; retomar a entrada de itens pessoais, higiene e artesanato fornecido pelos familiares, fornecer todos os insumos necessários aos adolescentes privados de liberdade, para que os itens trazidos pela família tenham propósito complementar e não suplementar a falta de provimento do estado e aumentar a quantidade e frequência na distribuição de itens de higiene e proteção neste momento de pandemia.

Até o presente momento, os órgãos e as autoridades oficiadas pela Defensoria Pública e pelo Mecanismo Nacional de Prevenção e combate à tortura não apresentaram respostas.

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