Democracia para quem? Os massacres diários nas prisões brasileiras

 Em Combate e Prevenção à Tortura, Notícias

No primeiro dia do ano de 2023, ocorreu  a posse do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva. Diversos setores da sociedade enxergam sua eleição como um avanço da democracia e do respeito aos direitos humanos, e as expectativas nesse sentido são grandes em relação ao seu terceiro mandato. 

Apesar desse momento de otimismo, não podemos esquecer que a população encarcerada continua sendo torturada diariamente, tendo seus direitos violados. É preciso sempre  relembrar e chamar a atenção para outros eventos que aconteceram no primeiro dia de anos anteriores, que muitas vezes são deliberadamente esquecidos e que precisam ser lembrados, para que nunca mais aconteçam: os massacres nas prisões. 

Estamos falando do Massacre de Urso Branco (2002), do Massacre de Manaus (2017), ambos ocorridos no dia 1º de janeiro, e dos Massacres de Roraima (2017) e de Rio Grande do Norte (2017), que também ocorreram nas primeiras semanas do ano. 

Há 21 anos, cerca de 27 pessoas morreram nas mãos do Estado na Casa de Detenção José Mário Alves, também conhecida como Urso Branco, em Porto Velho, Rondônia. O dia marcava, mais uma vez, a posse do presidente eleito à época, Luiz Inácio. A matança entrou na rota histórica dos permanentes ciclos de massacres prisionais que acontecem periodicamente na democracia brasileira. 

A unidade, que tinha sido construída na década de 90, tinha capacidade para cerca de 300 pessoas. Mas por causa do desejo punitivista que guia o Judiciário e a administração pública brasileira, na época do massacre havia mais de 13 mil pessoas presas. Algumas celas que comportavam seis pessoas amontoavam cerca de 20 presos. 

A atmosfera que existia no espaço prisional era de profunda violência e temor. A lógica por trás da gestão prisional e do judiciário de enfiar as pessoas em espaços claustrofóbicos e insalubres catalisou o processo de difusão da tortura na unidade, tornando insuportável a sobrevivência e fazendo com que o massacre, enfim, explodisse.      

No mesmo caminho, em 2017, no primeiro dia do ano, 56 pessoas foram brutalmente mortas, mais uma vez nas mãos do Estado, no Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj), em Manaus, Amazonas. 

A Pastoral Carcerária Nacional esteve na unidade em abril de 2015  e constatou que havia um anúncio do que estava por vir . Um relatório do Mecanismo Nacional de Combate e Prevenção à Tortura, de 2016, reforçou os relatos de que um massacre poderia ocorrer. Havia diversas violações de direitos e um clima de temor profundo. Apesar das denúncias, o Estado manteve sua política de morte, levando ao massacre na unidade, fazendo com que mais uma vez as pessoas negras e jovens fossem brutalmente exterminadas. 

E foi só o começo: cinco dias depois, 33 pessoas foram mortas na Penitenciária Agrícola de Monte Cristo, localizada na zona rural de Boa Vista, Roraima. A situação da unidade também era publicamente calamitosa: torturas, superlotação, insalubridade, fome e sede. Algumas pessoas mortas foram encontradas no esgoto da unidade. E nove dias depois, na Penitenciária Estadual de Alcaçuz, no Rio Grande do Norte, outros 26 detentos foram mortos.

O ritmo da violência massacrante que domina a história prisional brasileira mostra o quão cruel e mortífera é a democracia para as pessoas jovens e negras que são excluídas e  capturadas pelo braço armado do Estado. 

Na “Carta 2 de outubro: um marco da democracia dos massacres” a Frente Estadual pelo Desencarceramento de São Paulo nos ensina que:

“De que democracia estão falando? O Estado Democrático de Direito  normalizou a barbárie cotidiana, e se orgulha de ter no centro do seu sistema de justiça uma invenção como a prisão: lugar de tortura e morte, como há anos denunciam as mães, familiares e sobreviventes dessa máquina genocida”.  

O início do ano, portanto, tem que ser marcado também pela lembraça das vidas que foram ceifadas e pelas famílias que tiveram seus entes queridos presos e exterminados pelo terrorismo estatal. A memória das vítimas dos massacres prisionais também precisa estar nas manchetes, para que o novo governo e as autoridades do sistema de justiça criminal percebam a crueldade do cárcere. 

E os massacres e torturas não param. Atualmente existem mais de 850 mil pessoas privadas de liberdade, expostas à diversas práticas de tortura, tais como agressões físicas, falta de alimentação e água, falta de acesso à saúde, sem contato com a família, dentre outras violências. Segundo os dados da Pastoral Carcerária, houve um aumento de mais de 30% no número de casos de tortura entre 2018 e 2020. 

No mesmo sentido, essas pessoas permanecem confinadas em espaços insalubres de difícil acesso social, já que existem inúmeras restrições ao contato familiar e à assistência religiosa, o que também dificulta a fiscalização de situações torturantes. 

Durante o natal, por exemplo, a Pastoral Carcerária e seus agentes sofreram diversas barreiras para realizar celebrações, tendo dificuldades para entrar com hóstia, vinho – materias imprescindíveis para a celebração da missa – além de Bíblias e outros instrumentos litúrgicos necessários para a realização do próprio rito. Isso mesmo tendo tratados internacionais e uma Concordata entre o Estado Brasileiro e o Estado Vaticano que garante a plena liberdade de culto e a assistência religiosa em todas as suas formas, sendo que para os cristãos católicos a Eucaristia é a fonte e o ápice de toda a vida cristã. (Catecismo da Igreja católica par.1324 -1327; Lumen gentium 11).

Por isso, diante das violências sofridas cotidianamente pelas pessoas presas, precisamos lutar pela sobrevivência de cada um e cada uma. É a memória viva dos que foram mortos pelo Estado que nos guiará na luta contra o cárcere e esse permanente ciclo de massacres prisionais. Que 2023 também seja um ano de fortalecimento da luta por um mundo sem cárceres. 

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