Débora Maria teve o filho Edson assassinado nos chamados “Crimes de Maio”, em 2006. Ela transformou a dor em luta contra as atrocidades da Segurança Pública e ajudou a criar o Movimento Independente Mães de Maio. “A morte de nossos filhos em si é uma coisa insuportável, não tem doutor que cure, mas o que mais nos mata é a impunidade”, afirmou em entrevista exclusiva ao Site da PCr Nacional.
Entre 12 e 26 de maio de 2006, em todo o Estado de São Paulo, 564 pessoas foram assassinadas por arma de fogo, sendo 505 civis e 59 agentes da Segurança Pública. Enquanto ocorriam rebeliões em ao menos 74 unidades prisionais do estado, a Polícia Militar agia com extrema violência nas periferias de São Paulo, nas cidades da Grande São Paulo e na Baixada Santista. Em uma “postura justiceira”, a polícia “matava primeiro e se informava sobre quem era depois”.
Esse episódio ficou conhecido como Crimes de Maio. 10 anos depois, Débora fala de como tem sido viver e lutar, ao longo destes anos, por justiça. Leia a íntegra da entrevista
Site PCr Nacional – Como é rememorar estes 10 anos dos crimes de maio?
É bem complicado, pois 10 anos são 3.650 dias de pura tortura, sem comer e nem beber direito. Não tenho mais a vida que eu levava. Mas, ao mesmo tempo, é gratificante você estar em busca de justiça para seu filho e para os outros, porque não é só pelo meu filho, é por 600 outros filhos, e tentar evitar que a metralhadora continue mirada para os jovens negros e periféricos. É gratificante essa luta porque eu me alimento dessa luta. Esse movimento é o que me faz respirar, me alimentar e continuar viva, porque se não fosse esse movimento com certeza eu já tinha morrido, porque a morte de nossos filhos em si é uma coisa insuportável, não tem doutor que cure, mas o que mais nos mata é a impunidade.
E quais foram os avanços das investigações nestes 10 anos?
Em 10 anos, foram algumas conquistas por parte de um enfrentamento que fizemos, mas, ao mesmo tempo, é uma decepção da gente não avançar nem um milímetro nas investigações desses crimes que foram um dos maiores massacres da história contemporânea do nosso País, em que o governo é o culpado porque é o manda-chuva da tropa e o Judiciário, que acoberta, não faz o que deveria ser de dever dele. É o que mais mata com uma canetada e um pedido de arquivamento, numa omissão. Às vezes, perguntamos para o judiciário onde está o erro, porque muitas vezes o erro vem da família que não conseguiu testemunhas – e as testemunhas tem que ser parte humana. O nosso judiciário está tão ultrapassado que exige a parte humana e sabemos que a parte humana será a próxima vítima, ou de homicídio ou do encarceramento em massa forjado.
Como é fazer esse enfrentamento todos os dias?
Vemos que estamos em uma sinuca de bico, onde temos leis que não são cumpridas pelo Judiciário e o acobertamento dessa fantástica fábrica de cadáveres pelo País, onde discute-se muito homicídio e se discute muito encarceramento em massa e nada o País faz para amenizar essa situação. Estou falando pelas mães do cárcere e pelas mães das vítimas. Tenho uma responsabilidade muito forte que Deus me deu e uma missão que meu filho me deixou de lutar pelos que estão vivos, então, de uma dona de casa, passei a compreender esse sistema que não precisa de diploma acadêmico para ser compreendido. Esse sistema que é podre, que o poder desse sistema é só um poder de corrupção e achaque aos pobres, uma condução que eles dão de patrocinar os ricos, patrocinar nossas mortes e nosso encarceramento. Esse é um dos legados destes 10 anos: você, uma dona de casa, aprender a sobreviver no meio desses trogloditas do poder e da política. É bem complicado, mas conseguimos uma forma de sobreviver no meio desses abutres.
Nesses 10 anos, o sistema só piorou, com mais encarceramento e mais chacinas. Como é olhar para esse quadro e ver que o sistema está piorando a situação do pobre, do preto e do morador de periferia?
A tendência é só piorar, visto o desenho que nosso País está tomando, com o fascismo está tomando conta. Quando temos uma ditadura mal resolvida – não podemos falar que acabou – que está presente perante a sociedade pobre. Quando falamos em reação da sociedade, falamos da reação da sociedade pobre, que sente na pele no cotidiano o que é a ausência do Estado, o abandono do Estado. Damos poder para os políticos, para resolver e serem nossos representantes, e os políticos pegam esse direito de nos representar para si próprios para suas famílias e vemos que a segurança pública só piorou, e por mais que a gente reaja, a gente não consegue alcançar o objetivo que é a igualdade.
E como a periferia se coloca nessa luta?
Recentemente, participei de uma audiência pública na Câmara dos Deputados, casa onde faz as leis. Uma parcela de culpa vem da li, da Casa do Povo, onde vemos uma negra que tentou ir para a audiência e foi barrada pela polícia legislativa. Temos nossas vidas militarizadas, não há outro caminho, só teremos êxito com a desmilitarização das polícias e um outro Estado, porque esse não tem mais conserto. Esse Estado que mais parece um queijo suíço, pois cada um que vem e tira uma casquinha, como diz a gíria, mas precisamos rever esse País e não está nas mãos dos políticos, está nas mãos da periferia. Porém, quando vemos a periferia bater palma pelo impeachment de uma presidenta que foi eleita pela maioria, não estamos conduzindo uma democracia. Quando vemos uma periferia pedir o encarceramento dos menores, vemos que a periferia está analfabeta política. Quando falamos analfabeta política, não estamos falando de siglas partidárias, mas do entendimento do processo político. Estamos clamando dentro das universidades, pois nos deparamos com alunos e estudantes que falam ‘sou da periferia’, ‘sou da favela’ e depois que se formam esquecem suas raízes. O único modo de a gente transformar isso, são pessoas sábias dentro da própria favela. Precisamos de ações, até mesmo com aulas públicas, por exemplo, para dar entendimento ao nosso povo. Vemos um País velho, de governantes velhos, vemos o nosso futuro sendo exterminado, e vemos uma máquina de moer pobres e negros. Não conseguiremos a igualdade se a favela e a periferia não se movimentarem. Temos que parar de enxugar gelo. E além dos políticos, temos a mídia que polui a mente das pessoas.
Então, aluta continua. Não é luto de tristeza, mas é luto de buscar mudanças?
Luto de estar atentas. Luto de estar presente. Luto de dizer que não aceitamos. Luto de falar que as mães devem ter consciência, porque muitas delas são escravas do capital e vítimas do machismo. O dia que tivermos responsabilidade maior, conseguiremos atingir esse objetivo. Depende de nós, depende das mulheres para a transformação da democracia. Temos que lutar pela desmilitarização das polícias e por uma reforma do judiciário, que usa seres humanos de cobaia para a fantástica fábrica de cadáveres ou do encarceramento em massa. Um judiciário classista e racista que só tem pessoas brancas de alto padrão.
Entrevista concedida a Edcarlos Bispo, da comunicação da PCr Nacional
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