Por Thainá Barroso*
Na última semana, diversos portais de notícias na mídia publicaram matérias que denunciavam o uso sistêmico de tortura e violências no sistema carcerário no Estado do Ceará.
As circunstâncias vividas pelas pessoas presas foram aferidas, mais recentemente, durante uma inspeção realizada no dia 23 de junho de 2023 na Unidade Prisional Elias Alves da Silva, localizada na região metropolitana de Fortaleza, ocasião na qual a Defensoria Pública do Estado identificou evidências de práticas de tortura contra as pessoas privadas de liberdade, as quais incluíam a torção de testículos, a quebra de dedos, o arrancamento de dentes e a determinação de que a pessoa presa ficasse em uma posição de cabeça para baixo, equilibrada somente pela testa, como uma forma de castigo.
Essa realidade, por mais assustadora que seja, não é uma questão recente nos espaços de privação de liberdade no Ceará. A Pastoral Carcerária Nacional vem denunciando há anos o modelo brutal de gestão de presídios no estado, bem como as condições torturantes às quais são submetidas as pessoas dentro do sistema prisional do Ceará. Diversas são as formas de tortura: somam-se às agressões físicas e psicológicas a superlotação excessiva, a ausência de colchões, a escassez de condições básicas de higiene e a falta de acesso à água potável.
Em agosto de 2019, por exemplo, uma equipe da Pastoral Carcerária Nacional esteve no Ceará para acompanhar os efeitos de uma crescente militarização das unidades prisionais do estado. Na ocasião, foram verificados graves circunstâncias nas unidades: celas precárias, pequenas e sem ventiladores; pessoas presas que precisavam dormir no chão, até mesmo no banheiro; impedimento de ter objetos nas celas, como papel ou caneta, lençol ou até mesmo outras trocas de roupa; a existência de apenas um tanque de água, enchido uma ou duas vezes ao dia, cujo conteúdo deveria ser dividido entre todos os presos da cela para fins de higiene pessoal, limpeza da cela e das roupas, descarga e, inclusive, para beber. Além disso, em 2019, a Pastoral Carceráriajá denunciava a utilização de um “procedimento” (incluindo ficar no chão, com as mãos para cima) e da tortura contra as pessoas privadas de liberdade, inclusive a própria quebra de dedos.
Quanto às mais recentes denúncias trazidas pela Defensoria Pública, a Secretaria da Administração Penitenciária do Ceará se omitiu e negou a ocorrência dessas práticas dentro do sistema. E é exatamente assim que a SAP vem se comportando nesses últimos anos, também diante de outras denúncias encaminhadas pela PCr e por outras instituições.
Luis Mauro Albuquerque, Secretário de Administração Penitenciária do Ceará desde 2019, é considerado o idealizador da doutrina FTIP (Força-Tarefa de Intervenção Penitenciária), que consiste, segundo o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), basicamente, no treinamento dos agentes penitenciários das unidades a utilizarem-se de torturas física e psicológica contra as pessoas privadas de liberdade. Vale ressaltar que o Secretário, em 2017, ainda enquanto responsável pela SAP-RN, defendeu abertamente a técnica de tortura de quebrar dedos. A Pastoral Carcerária também já denunciava e criticava esse modelo de gestão desde 2019.
Em 2021, a Assembleia Legislativa do Estado do Ceará concedeu título de Cidadão Cearense a Luís Mauro de Albuquerque, ocasião na qual, mais uma vez, a Pastoral Carcerária manifestou preocupação, destacando os problemas que perpassam a administração de Albuquerque à frente da SAP-CE.
De fato, as denúncias de tortura no sistema prisional do Ceará não pararam em 2019. No mês de setembro de 2022, por exemplo, a Corregedoria dos Presídios juntamente com o Ministério Público do Estado do Ceará conduziram uma inspeção na Unidade Prisional Professor Olavo Oliveira II, em Itaitinga, e encontraram indícios de tortura em mais de 70 pessoas presas. Os relatos incluíam práticas abusivas como enforcamento, sessões de inalação de gás, pisões na cabeça, entre outras formas de violência.
Em 2022, após a eleição do Governador Elmano Freitas (PT) no estado do Ceará, mais de 60 organizações, inclusive a Pastoral Carcerária, se mobilizaram contra a recondução de Luís Mauro Albuquerque Araújo ao cargo de Secretário de Administração Penitenciária. Esse apelo público reuniu, do mesmo lado, órgãos de defesa dos direitos humanos, grupos de familiares de presos e o sindicato de agentes penitenciários do Ceará. No entanto, o pedido foi desconsiderado pelo governador, que optou por manter o secretário em seu cargo.
As últimas denúncias, trazidas pela DPE-CE após inspeção realizada em junho de 2023, na realidade, corroboram o que a Pastoral Carcerária vem denunciando há anos, evidenciando que a tortura e a violência institucional sistemática é recorrente e profundamente enraizada no sistema prisional do estado do Ceará.
Enquanto Pastoral Carcerária, devemos estar atentos para combater as práticas de tortura e prestar apoio às vítimas dessa violência. Como o Papa Francisco declarou em junho deste ano, em apelo pela abolição da tortura em todas as suas formas, a prática da tortura não é uma mazela recente da sociedade: “o próprio Jesus foi torturado e crucificado”; mas também não é uma história do passado, e sim faz parte do nosso caminho atual: “existem formas de tortura muito violentas, outras mais sofisticadas, como os tratamentos degradantes, a anulação dos sentidos ou as detenções em massa em condições desumanas que tiram a dignidade da pessoa.” Com efeito, como bem colocado pelo Santo Padre, precisamos “colocar a dignidade da pessoa acima de tudo”.
*:Thainá Barroso é assessora jurídica da Pastoral Carcerária Nacional