Artigo: É tempo de ouvir as profetas nas portas da cadeia

 Em Combate e Prevenção à Tortura, Notícias

Lucas Duarte
Rosinel de Oliveira

No final do mês passado, o Jornal Plural Curitiba publicou reportagem sobre a situação problemática enfrentada por familiares de pessoas presas no Paraná, revelada a partir da ação de acolhimento e apoio realizada pela Frente Estadual pelo Desencarceramento. Os casos de abusos e violações são muitos. Situações realmente torturantes: leitura arbitrária da imagem do Raio X; revista vexatórias; assédio moral, retenção infundada de credenciais. A Pastoral Carcerária, em sua missão de evangelização e promoção da dignidade humana, como Igreja em saída, em busca de um mundo sem cárceres, não pode ficar indiferente às dores dessas pessoas, que são também as dores do corpo de Cristo, a Igreja; e este período histórico parece favorável para incentivar a criatividade evangélica e política de nossos agentes de pastoral (e todos os indivíduos e organizações comprometidas com os Direitos Humanos).

As visitas presenciais retornaram às unidades prisionais paranaenses apenas em novembro do ano passado, depois de muita insistência de coletivos de familiares, organizações de Direitos Humanos e órgãos de Estado. A pandemia de COVID-19 foi a justificativa das autoridades para suspender não apenas visitas de familiares, amigos, religiosos e até advogados, mas também restringir o envio de itens de alimentação e higiene somente pelos Correios.

Nesse período, forças políticas reticentes aos direitos das pessoas presas e seus familiares ensaiaram corrigir a deficiência assistencial das prisões, querendo tornar permanentes as limitações impostas pela pandemia. Enquanto diversos setores da sociedade retornaram de forma minimamente adaptada à normalidade com planejamento e vigilância, no sistema penitenciário, o único normal que se mantém é a violência, antes, durante e depois da crise sanitária.

Articuladoras da Frente Estadual pelo Desencarceramento e agentes de Pastoral Carcerária, com a volta das visitas presenciais, iniciaram a Solidariedade Antiprisional. Uma ação, que acontece uma vez ao mês, em frente ao Complexo Penitenciário de Piraquara. Inicialmente, a intenção era emprestar roupas adequadas para que visitantes pudessem entrar nas unidades, mas que passou a acolher e apoiar familiares, produzindo vínculos, fortalecendo umas às outras e recebendo e encaminhando denúncias graves de violações de Direitos Humanos aos órgãos responsáveis por fiscalizar o sistema carcerário. Desde então, tem se multiplicado os relatos, em diversas unidades, como aquele que estragou o dia das mães de muitas, que não puderam ver seus filhos.

Na maioria das vezes, mulheres são constrangidas no scanner corporal, tendo que passar diversas vezes pelo Raio-X, aguardando de 30min a 2h em pequenas salas, sendo acusadas de portar itens ilícitos em seus corpos, coagidas para assumir delitos e submetidas a procedimentos vexatórios. Não bastasse todo esse inferno, há casos de mães que inexperientes na dinâmica carcerária, fazem longas viagens, deixam de comer para evitar “problemas” no scanner.

Sob o nervosismo imposto pela coerção policial, elas têm suas visitas negadas e credenciais retidas sem explicação explícita ou protocolo adequado. Aquelas que conhecem e defendem seus direitos não sofrem menos. Aconteceu que após uma visitante ser submetida ao procedimento relatado e ter sua visita suspensa, foi escoltada a duas unidades de saúde e nada foi comprovado. Ela não tinha nada ilícito em seu corpo. Sem falar de motivos banais que impossibilitaram as visitas, como posse de moeda de 0,50 centavos, papel dentro do RG com número de processo, uso de megahair, etc.

É óbvio que o direito afirma que a pena não pode ultrapassar o indivíduo condenado, mas não é isso que acontece nos dias de visita nas unidades prisionais do Paraná. O cotidiano é violento e isso é apenas aquilo que as famílias querem partilhar. O medo e insegurança rondam as vidas de pessoas presas e seus familiares e nem todas querem reviver e denunciar as violações, às quais são submetidas. Muitas que se vêem sozinhas e sem apoio e solidariedade, acreditam na máxima de que se reclamar piora.

Temem que seus filhos sofram ainda mais, pois o Estado os tem como reféns, que pode arbitrariamente submetê-los a isolamentos, privação de alimentação, castigos coletivos e outras violências físicas e psicológicas. Enquanto isso, o governador Ratinho Junior se orgulha em poder concluir seu mandato sem nenhuma pessoa presa sob custódia da Polícia Civil. É sabido que a gestão de um novo departamento de Polícia Penal não é suficiente para superar esse problema crônico que atinge nosso país. Não são mais policiais, unidades reformadas ou novas e armas modernas que criarão as condições necessárias para a diminuição dos efeitos do encarceramento no corpo, mente e espírito de familiares de pessoas presas.

Aqueles que dizem defender as famílias brasileiras fecham os olhos e ouvidos para o que acontece todo fim de semana com essas mulheres nas filas das unidades prisionais. Se o serviço público, em geral, está cada vez mais precarizado, os servidores do DEPPEN, em particular, não escapam a esse jeito torto de governar. É necessário renovar o quadro técnico do departamento, investir e ampliar a Defensoria Pública e instituir o Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura com estrutura e autonomia, para atuarem em todo o estado. As instituições precisam funcionar na garantia de direitos de forma democrática.

Nesse tempo de discernimento político, somos instigados pelo processo eleitoral a discutir o Brasil e o Paraná que queremos. Nossa Igreja tem orientado assumirmos as grandes causas do Evangelho como compromisso político para combater a crise democrática instalada no país. Não podemos conviver pacificamente com os projetos de morte. A fome e a miséria, a falta de trabalho e renda, a violência de Estado e o extermínio da juventude negra precisam ser combatidos com a boa política.

Aquela que não está a serviço do capital e dos poderosos, mas é feita de baixo para cima, entre os movimentos comprometidos com a transformação social, e está pautada pela solidariedade e justiça, em vista do bem comum. Por isso, os grupos de Pastoral Carcerária precisam se aproximar, ir ao encontro, dialogar e fortalecer a organização e a luta de familiares, amigos de pessoas presas e sobreviventes do sistema carcerário. É com essas pessoas que ensaiamos um mundo sem cárceres. Elas são semeadoras de mudanças, promotoras de pequenas e grandes ações, poetas sociais de um novo mundo e nos ensinam que a democracia brasileira está inconclusa.

A Igreja em saída tem que estar com suas portas abertas para acolher e reunir grupos de familiares em rodas de conversa para ouvir e partilhar suas dores e alegrias; encorajar a formulação de denúncias; apoiar a organização coletiva desses grupos; e debater os projetos de segurança pública e a política criminal com seriedade. Nesse sentido, os pontos da Agenda Nacional pelo Desencarceramento e as Frentes Estaduais são importantes diretrizes para nossa ação e espaços privilegiados de atuação. Pois, se não nós, quem? Se não agora, quando? É nós por nós. Não vamos nem podemos ficar calados e inertes. Cada vez mais familiares têm se unido para dar um basta a toda forma de opressão, e os agentes de pastoral precisam se colocar lado a lado com elas, na certeza que o Amor Político organiza o Povo e cultiva a Casa Comum, para que ninguém mais morra nas celas, nos becos e vielas e nas ruas, nem por prisão, nem tiro, nem de fome. Queremos viver!

Lucas Duarte é agente da Pastoral Carcerária do Paraná 
Rosinel de Oliveira é Articuladora da Frente Estadual pelo Desencarceramento do Paraná

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