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Eliberton Bernardo da Silva vestia um shorts fino de dormir quando saiu algemado da casa da sua mãe em Hortolândia, na fria manhã de 29 de maio – mês que registrou as temperaturas mais baixas dos últimos 15 anos na região de Campinas, interior de São Paulo. Ele foi levado para o plantão policial e, de lá, para o Centro de Detenção Provisória de Hortolândia.
Cumprindo pena no Centro de Progressão Penitenciária (CPP) “Ataliba Nogueira”, de Campinas, Eliberton era considerado foragido desde o dia anterior. Ele tinha abandonado o Hospital da Unicamp após receber alta médica.
Saindo do hospital por volta das 19h, ele foi direto para a casa da sua mãe, Eunice Bernarda da Silva. Os três dias em que ficou internado no hospital foram passados sem a vigilância de agentes penitenciários. Na ação que resultou em sua recaptura, dois servidores do CPP “Ataliba Nogueira” e pelo menos um Guarda Municipal de Hortolândia foram até a casa da mãe de Eliberton, na manhã do dia 29.
Com intuito de levá-lo de volta ao presídio, de acordo com ela, os agentes teriam arrombado o portão e entrado na residência sem apresentar nenhum mandado. Lá dentro, reviraram gavetas e outros pertences da família, na frente dos três netos de Eunice – de 7, 12 e 16 anos de idade. Na sequência algemaram Eliberton, que estava deitado num dos sofás da sala, e o levaram dali – de acordo com o relato da própria Eunice.
Na versão da Secretaria da Administração Penitenciária (SAP), os servidores do CPP se dirigiram até a casa de Eunice após receber uma denúncia anônima sobre o paradeiro de Eliberton. Chegando ao endereço, avistaram Eliberton na garagem da casa e fizeram a recaptura de maneira “pacífica”, sem que ele esboçasse “qualquer resistência” e sem ocorrer “qualquer tipo de invasão ao domicílio”.
“Entraram pelo vão”
Sentada no sofá mergulhado na semi-escuridão da sala de sua casa, Eunice aponta para o lugar em que Eliberton estaria deitado quando os agentes supostamente invadiram o lugar. “Entraram ‘um monte’ aí, até guarda municipal entrou na minha casa. Eu nunca vi tanta gente como naquele dia”, descreve. “E pra pegar uma pessoa que estava indefesa, doente, fraca e nem iria fazer nada”.
Moradora do bairro Santa Clara, em Hortolândia, há quase 40 anos, Eunice Bernarda da Silva diz que não sabe por que o filho fugiu do hospital após receber alta. “Não tinha ninguém com ele, ele estava sozinho” diz, lembrando da explicação que o filho havia dado: “ele só me falou que queria ficar aqui em casa porque estava muito ruim”.
A Lei de Execução Penal (LEP), que regulamenta os direitos dos condenados nas penitenciárias brasileiras, estabelece que os presos podem ter tratamento médico fora da unidade prisional, mediante escolta.
De acordo com a SAP, Eliberton permaneceu sem escolta durante a internação porque existe um entendimento judicial da região de Campinas, segundo qual “presos em regime semiaberto não necessitam permanecer sob vigilância e escolta quando internados em hospitais”. A secretaria ressalta que a permanência do preso em regime semiaberto se caracteriza “muito mais pelo senso de autodisciplina e autorresponsabilidade, do que propriamente por mecanismos de contenção contra evasões ou abandonos”.
Segundo o relato de Eunice, não houve a presença da Polícia Militar na ação que recapturou Eliberton. Ela conta que os agentes chamaram por seu filho no portão, mas Eliberton não quis atender pois “achava que ia morrer no presídio”. Sem respostas, os guardas “violaram o portão, arregaçaram o portão e entraram pelo vão”, segundo a versão de Eunice, que afirma não ter recebido nenhum mandado judicial.
“Reviraram minhas coisas sem necessidade. Não sei o que eles estavam caçando nas minhas gavetas, mas não falaram nada. Ficaram revirando as coisas e eu achei um absurdo aquilo. Se quisessem fazer alguma coisa, que levassem meu menino, mas não tem motivo mexer nas coisas da gente”, avalia.
O que diz a lei
De acordo com a Lei Complementar 1246, de 2014, que trata da carreira do agente penitenciário paulista, suas atribuições dizem respeito ao desempenho de atividades de vigilância, manutenção da segurança, disciplina e movimentação dos presos internos em Unidades do Sistema Prisional. Nesse caso, a ação dos agentes teria extrapolado o que a lei permite.
Recapturar presidiários não é uma ação “de praxe” dos servidores penitenciários, reconhece a própria SAP, em nota à reportagem. “Contudo, neste caso excepcional, fora necessária a presença de servidores para que pudessem auxiliar a Guarda Municipal no reconhecimento do preso evadido”, salienta a pasta.
Segundo as informações do Boletim de Ocorrência 954/2018, do Distrito de Polícia de Hortolândia, participaram da ação de recaptura o guarda municipal Devanil Alves e o agente penitenciário Genesio de Andrade. O registro emitido às 10h47 do dia da recaptura de Eliberton relata que o agente pediu apoio à Guarda Municipal e que ambos dirigiram-se ao local dos fatos.
A SAP afirma que estiveram na recaptura o diretor de Núcleo e o diretor de Disciplina, ambos do CPP “Ataliba Nogueira”. Este último teria autorizado a ação. A secretaria não respondeu se foi utilizada viatura do presídio no procedimento nem se havia mandado judicial com os agentes.
Problemas de saúde
Com 36 anos de idade, sem esposa nem filhos, Eliberton tinha passado o último dia das mães, 13 de maio, em casa e com a família – sua mãe, irmão e sobrinhos. A saída temporária que beneficia reeducandos em regime semiaberto com um sexto da pena já cumprida e com bom comportamento durava até o dia 16 de maio.
Portador de Diabetes Mellitus tipo I, ele passou mal enquanto estava fora da cadeia e foi internado no Hospital Mário Gatti de Campinas. O prazo da “saidinha” venceu e, como ele não retornou ao presídio foi lançado o “abandono” em sua ficha prisional.
Segundo o que conta Eunice, a família entrou em contato com o CPP para notificar a internação e a impossibilidade de Eliberton retornar na data prevista. A SAP afirma que ninguém informou sobre o fato e, por isso, os servidores registraram o “abandono” de Eliberton.
“Quando meu outro filho levou ele até o presídio precisou de uma cadeira de rodas pra sentar ele porque estava muito fraco”, conta Eunice. “Ele tem diabetes, tem úlcera, agora a úlcera inflamou e está cheio de ferida. O médico já desenganou ele, diz que não tem mais o que fazer e que nem antibiótico dá jeito mais. Ele já tinha diabetes antes de ser preso, mas lá dentro piorou”, revela.
Ao retornar ao presídio, no dia 24 de maio, Eliberton informou sobre sua internação e o setor de saúde da unidade prisional contatou o hospital, que confirmou a informação. De acordo com a SAP, o sentenciado foi absolvido da imputação de abandono registrada anteriormente.
Um dia depois de voltar à cadeia, Eliberton teve um mal súbito e foi levado para o Hospital da Unicamp, de onde ele se evadiu após receber alta.
Perguntada sobre o estado de saúde de Eliberton, a SAP informa que ele recebe o devido acompanhamento por profissionais de saúde e todos os medicamentos prescritos são devidamente ministrados.
Sua mãe, no entanto, mostra incertezas. “Eu fico só matutando. O que que eu faço? Ele me escreveu uma carta falando que tá muito ruim, e que é pra eu ir visitar ele. Mas como que eu vou? Eu não trabalho, não tenho aposentadoria, não tenho renda. É difícil”, confessa.
Após ser levado ao CDP de Hortolândia, Eunice diz que transferiram seu filho para Piracicaba, o que dificulta as visitas da família. “Ele colocou na carta que vive passando mal e que a glicose dele abaixa muito”, lamenta a mãe, que indaga: “Agora eu pergunto se vão me dar passagem pra eu visitar meu filho doente? Ele tá lá longe, em Piracicaba. É importante ter a visita, principalmente da família”.
Idas e vindas
Preso em Hortolândia por roubar, em 2005, uma moto Titan CG125 com uso de arma de fogo, Eliberton foi condenado a 6 anos e 5 meses de pena em regime fechado.
Passou a cumprir pena provisoriamente em 2007 e, no dia 5 de janeiro de 2010, ganhou livramento condicional. Quinze dias depois, foi acusado de roubar uma moto Falcon em Hortolândia, também utilizando arma de fogo.
Preso mais uma vez, permaneceu em detenção provisória até janeiro de 2012, quando passou a cumprir pena no regime fechado. Em novembro do mesmo ano progrediu para o regime semiaberto, no qual permaneceu até dezembro de 2015 quando foi para prisão domiciliar.
Foi só em novembro de 2016 que transitou em julgado o primeiro processo de roubo e ele passou a cumprir pena no regime fechado em dezembro daquele ano. Chegou no CPP “Ataliba Nogueira”, de Campinas, em março deste ano.
Como já relatado pela Ponte, servidores do CPP “Ataliba Nogueira” chegaram a apontar outros casos de supostas irregularidades na atividade da direção da unidade prisional.
Em abril de 2018 o comando do presídio teria esquecido um preso no Hospital Geral de Guarulhos. Em fevereiro, uma outra evasão aconteceu mas não constou em registros, sendo descoberta porque a direção foi avisada pela Delegacia Seccional de Campinas. No ano passado dois homens fugiram do CPP, porém a ausência da dupla não foi registrada no livro de ocorrências e só foi descoberta dias depois na contagem dos reeducandos.
A reportagem entrou em contato com a Guarda Municipal de Hortolândia para saber a respeito da conduta dos seus agentes e a eventual invasão da residência, mas não obteve respostas até a publicação da reportagem.