3 anos do massacre de Altamira: “não podemos nos silenciar diante tanta injustiça”

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Neste 29 de julho, o segundo maior massacre em um presídio da história do Brasil, após o massacre do Carandiru, ocorrido em Altamira, completa três anos. 58 pessoas foram mortas no Centro de Recuperação Regional de Altamira (CRRA), no Pará. Mais 4 presos, que haviam sobrevivido, foram assassinados durante a transferência de Altamira para Marabá, totalizando 62 mortes. Parte das mortes teriam ocorrido em decorrência de incêndios em celas contêineres.

O padre Patrício Brennan, que atuava na Pastoral Carcerária de Altamira, acompanhou a dor das famílias dos detentos mortos no processo de identificação dos corpos. “Ouvi mulheres gritando pelos maridos, ‘mataram meu marido’, elas diziam, é uma coisa que a gente não esquece, é triste o que aconteceu e é um dia que não deve ser esquecido”, afirmou.

Na época, a coordenação nacional da Pastoral Carcerária, cumprindo sua missão profética de estar ao lado das pessoas presas e seus familiares, foi até Altamira para prestar solidariedade, ouvir o que os familiares tinham a dizer e não deixar que mais um massacre no sistema penal fosse esquecido pela sociedade.

Para a coordenação da Pastoral, ficou nítido o genocídio da população negra em operação, o descarte e o pouco valor à vida negra e a falta de empatia que o Estado tem com as pessoas mortas e seus familiares. No Batalhão da Polícia Militar, havia um caminhão frigorífico que continha os corpos de presos que ainda não tinham sido identificados. Do caminhão saía um líquido, derivado da decomposição dos corpos e da má refrigeração. Muitas famílias não conseguiam nem enterrar os seus mortos, e muitas tiveram que os enterrar como indigentes.

O massacre estava anunciado. Uma das familiares de um dos presos mortos, cujo corpo estava no caminhão frigorífico, contou que o preso comunicou à família e ao presídio que o massacre ia acontecer. “Ele ficou sabendo. Fez bilhetes, mandou para a diretora do presídio, mas eles não ligaram”.

O trauma provocado foi insustentável. Outra família disse que havia “uma tristeza que eu vou levar pro resto da minha vida e com ódio no coração de saber que ninguém fez nada. (O governo do Estado do Pará) teve oportunidade de fazer, teve tempo de fazer (a polícia entrar no presídio para controlar a situação), e ninguém fez nada”.

A produção de mortes afetou profundamente a vida das famílias. “Não fiquei muito tempo lá na porta, comecei a passar mal e vim para casa. Você chega lá, fica naquela ansiedade, fazendo oração… meu filho foi totalmente carbonizado, ficou sem as mãos, sem os pés, com o rosto deformado”. Os danos foram irreparáveis.

O papel da narrativa midiática e estatal

No mesmo dia do massacre, o Portal G1 noticiou que “uma briga entre organizações criminosas provocou a rebelião”. Em letras garrafais, o Estado de São Paulo intitulou sua reportagem com “58 presos são mortos em Altamira após briga de facções”. O Uol Notícias, dando voz às autoridades locais, noticiou que “duas facções entraram em conflito durante o café da manhã”. O site Metrópoles declarou que “Altamira é um capítulo da guerra de facções”. Os demais meios de comunicação conservadores reproduziram o mesmo discurso, nomeando o episódio mais como rebelião do que massacre.

Essa narrativa vem se repetindo com o passar do tempo. Observa-se que o Estado sequer é mencionado como possível responsável pelas mortes. Há, nesse sentido, um desvio na direção do olhar, uma espécie de miopia deliberada e forçada: prefere-se imputar às mortes como autoextermínio ou como conflito interno do que assassinatos produzidos e provocados pelo próprio Estado.

Segundo Felipe Freitas, “o domínio das facções criminosas, ou das milícias, é sempre resultado da ação do Estado e da forma pela qual os governos, os Parlamentos e o Poder Judiciário optam por tratar o problema da violência. As facções não são organizações criminosas estranhas aos aparelhos de Estado, mas, pelo contrário, são instâncias de gestão do crime e da criminalidade que se alimentam das relações com os governos”.

Os discursos proclamados pelo Estado e pelos meios de comunicação ignoram e escondem as violências vivenciadas pelas pessoas presas na unidade, as torturas diárias sofridas, a superlotação sufocante, a falta de assistência médica, e outras inúmeras violações de direitos que ocorriam. Quando se passa a olhar para realidade de dor sofrida pelas pessoas presas, o famigerado “briga de facção” passa a ser uma fantasiosa manipulação.

Trocando lentes: a responsabilidade do Estado

Segundo informações do Conselho Nacional de Justiça, o Centro de Recuperação Regional de Altamira estava hiperlotado. Com capacidade para 163 presos, comportava 343. Relatório divulgado na segunda-feira seguinte ao massacre pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) classificou as condições do presídio de Altamira como “péssimas”.

Após o massacre, a medida encontrada pelo poder público foi a desativação do Centro de Recuperação Regional de Altamira (CRRA) e a inauguração apressada de um novo presídio em novembro de 2019, que vinha sendo construído há seis anos, na cidade de Vitória do Xingu, há 40 km de Altamira, distanciando os presos das suas famílias. O esvaziamento do palco sangrento em Altamira também faz parte da política de apagamento e destruição da memória. O Estado tenta apagar a memória para que novos massacres continuem sendo produzidos.

Semanas depois do massacre, o Estado do Pará solicitou ao Ministério da Justiça a intervenção da Força Tarefa de Intervenção Penitenciária, tropa de elite extremamente militarizada e violenta, que deixa rastros de tortura por onde passa. A resposta dada pelo Estado foi perpetuar ainda mais violência no sistema prisional.

No mesmo sentido, as pessoas presas que estavam na unidade foram capturadas como bode-expiatório. Mais de 20 presos estão sendo processados criminalmente pela suposta autoria do massacre, em procedimento de júri, na 2ª Vara Criminal de Altamira. Alguns deles foram mandados, inclusive, para o torturante Sistema Penitenciário Federal, por supostamente serem lideranças de organização criminosa.

Por outro lado, o Estado continuou praticando suas violências estruturais e empresas continuam lucrando em cima do sofrimento das pessoas presas. Além do terrorismo estatal, o massacre foi extremamente lucrativo.

O consórcio Norte Energia, responsável pela construção de Belo Monte, custeou a construção do novo Complexo Penitenciário de Vitória do Xingu ao Governo do Pará, com 612 vagas, entregue em 04 de novembro de 2019, como “uma das contrapartidas pela construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte em Altamira”.

No início de julho deste ano, o CNJ publicou o último relatório de inspeção no Centro de Recuperação Masculino de Vitória do Xingu. O resultado continua assustador, pois as condições do estabelecimento penal foram consideradas péssimas. O relatório ainda descreve que a unidade “está precisando melhorar a limpeza e pintura”.

O investimento alcançou o gasto de R$ 125 milhões. Ou seja, o consórcio responsável por tornar Altamira uma das cidade mais violenta do país financiou a construção de um complexo prisional que, como todas as outras prisões, serve para descartar essas vidas tidas como indesejáveis e marginalizadas, em troca de lucro.

A construção da Usina, por si só, já foi extremamente impactante para o aumento da violência na cidade. O bispo emérito do Xingu, Dom Erwin Kräutler, chegou a declarar que “Altamira não cresceu, inchou”, evidenciando os problemas trazidos pela obra. Após a Usina, Altamira alcançou o índice de mais de 100 mortos a cada 100 mil habitantes.

Mas para além da construção do Complexo Penitenciário, o Termo Cooperação Técnico-Financeiro firmado com o governo do Pará em 2011 também produziu outros efeitos para a ampliação do armamento penal, como a construção da Delegacia Regional de Altamira, a compra de um helicóptero, a reforma do alojamento do 16º Batalhão da Polícia Militar em Altamira e a implantação do Sistema de Monitoramento por meio de vídeo para Altamira, com 50 câmeras. O consórcio Norte Energia, em troca de lucro, ampliou ainda mais o controle social e a violência penal na região. Trocou sangue e vigilância por dinheiro.

Ainda segundo o CNJ, atualmente há 22.827 pessoas privadas de liberdade no Estado do Pará. Há, ainda, 16.675 pessoas com mandados de prisão expedidos. Por outro lado, o estado possui 13.037 vagas. Enquanto não houver a adoção de medidas concretas de desencarceramento – e não construção de vagas – tragédias como a de Altamira poderão se repetir.

Como afirmamos desde o massacre do Carandiru em 1992, desde os massacres ocorridos em 2017 em Manaus, Roraima e Rio Grande do Norte e desde os massacres em 2019 em Manaus e Altamira, não se trata de uma crise no sistema prisional, e sim de um projeto e uma engenharia de morte que está em pleno funcionamento. As dezenas de mortes em Altamira, além das torturas e mortes diárias nas celas pelo país, são resultados desse planejamento genocida.

Há ações judiciais mobilizadas por familiares de pessoas massacradas que buscam apurar a responsabilidade civil do Estado do Pará pelas mortes ocorridas, pleiteando indenizações pelos danos sofridos, em trâmite nas Varas Cível e Empresarial de Altamira.

Autoridades da alta cúpula do estado continuaram exercendo suas atividades públicas, blindados e imunes, sem serem tocados por qualquer espécie de responsabilização. A diretora da unidade prisional na época, Dra. Patrícia Nazira Abucater Wal, tinha sido nomeada pelo então Secretário para Assuntos Penitenciários da Superintendência do Sistema Penitenciário do Estado do Pará (Susipe-PA), Jarbas Vasconcelos, 4 meses antes do massacre, através da Portaria nº 414/19-GAB/SUSIPE.

Após o massacre, a Dra. Patrícia foi promovida ao cargo de diretora de Execução Criminal da Secretaria de Estado de Administração Penitenciária do Estado do Pará (SEAP-PA). Jarbas Vasconcelos continuou no cargo de Secretário e lançou recentemente sua pré-candidatura a Deputado Estadual do Pará. Em 2013, Dra. Patrícia já tinha sido nomeada como conselheira da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), na subsede do Pará, por Jarbas Vasconcelos, na época presidente da entidade.

Em junho de 2022, a Secretaria de Administração Penitenciária ampliou o seu armamento de guerra e massacre, recebendo 1000 carabinas calibre 12’, fazendo com que todo plantão no sistema penitenciário do Pará ocorra com porte de calibre 12’. Os agentes também receberam mais 200 fuzis 5,56 e 30 7,62, óculos de visão noturna e lançadores de granada, igualando o poder de fogo do Sistema Penitenciário Federal. Gastos públicos continuam sendo utilizados para armar ainda mais o Estado penal, produzindo potenciais e anunciados massacres.

3 anos de massacre e a realidade local

O massacre de 2019, em conformidade com o plano de operação da política genocida que já atuava antes dele, reverbera até hoje no funcionamento do sistema prisional de Altamira e do Pará como um todo. E no cerne dessa construção estão as familiares de pessoas presas no contexto da tragédia anunciada e também na realidade atual. Abaixo, colocamos o relato de uma familiar que traz a situação no decorrer destes 3 anos:

“Nesses 3 anos a gente não viu resultado, na verdade tiveram ainda muitas perdas. O Governo não foi responsabilizado, na verdade os responsabilizados foram os detentos, eles falam que foi ‘briga de facção dentro do presídio’. As famílias nunca receberam nenhum apoio, nem psicológico, nem de nada mesmo. […]

[Atualmente] o que a gente vê ainda nos centros aqui do Pará são muitas retaliações aos detentos, que não estão recebendo visitas de famílias. Aqui em Altamira e em Santarém está proibida a visita, proibiram a entrada de defensores de Direitos Humanos, como a Pastoral Carcerária e alguns outros. Meu neto está há 3 anos em Santarém e a gente nunca conseguiu visitar ele: antes alegavam que era por conta da pandemia e agora passada a pandemia eles proibiram novamente as visitas de familiares e da Pastoral. A gente vê que ainda há retaliação, os detentos que estão sendo penalizados ao invés do Governo. Já que essas pessoas estavam sob a guarda do Governo, sob responsabilidade do Governo e eles não foram responsabilizados em nada, quem foram são os detentos.

A gente sabe que tem muita coisa que não foi investigada, na época a gente ouvia em frente ao IML as familiares dizendo que os diretores responsáveis pelo Presídio de Altamira sabiam o que ia acontecer, e essas pessoas saíram ilesas! Logo que tudo aconteceu alguns agentes penitenciários foram presos, porque a corda sempre arrebenta do lado mais fraco, mas o Governo de fato sequer foi responsabilizado por essas vidas que foram perdidas. Colocaram culpa nos detentos e ficou por isso mesmo, uma vida custa nada aos olhos do Governo.

A gente sabe que dentro dos presídios acontece a lei da sobrevivência, porque eles têm seus direitos tão violados. Quando chegam lá são tratados que nem bichos, nem sei dizer igual a que são tratados, eles perdem todos seus direitos, não são tratados como seres humanos. As pessoas ficam adoecidas nesses lugares e brigam entre si para sobreviver.

As famílias não tiveram apoio nenhum do Governo para reconhecer seus entes no IML, a sociedade que se organizou para dar apoio a essas pessoas. Ao mesmo tempo, a sociedade falava coisas horríveis, que se dizem quando matam um jovem, parece que não têm coração, não pensam nas pessoas. É uma desumanidade cruel que temos que ouvir. […] Por parte do Governo a gente não viu nenhuma solidariedade, nenhuma humanidade, nenhum apoio a essas famílias que perderam seus entes. Um Governo totalmente omisso, é isso que a gente viu. A coordenadora do centro [durante o massacre] foi inclusive promovida, essa foi a única responsabilização.

As pessoas que cometem delitos são jogadas nesses lugares não é como forma de punição, é como forma de banir eles da sociedade. O Governo quer dar essa resposta a todo custo para a sociedade e transforma esses lugares em depósitos de pessoas que não são bem vistas pela sociedade, que também é totalmente omissa e quer se ver livre dessas pessoas.”

Pelo fim dos massacres

Diante das atrocidades vividas pelas pessoas presas, não podemos mais nos calar. Padre Valdir nos lembra que “não temos o direito de ser sentinelas adormecidas. Ao ingressar nos presídios e cadeias e ver, ouvir e sentir as injustiças e violações de direitos que ali são cometidas, não temos o direito de nos emudecer. Não podemos ser cães mudos; silenciar perante tanta injustiça”.

Em memória a todos e todas que foram dizimados pelo Estado penal, precisamos continuar gritando e lutando por um mundo sem prisões e massacres.

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