3 anos depois do massacre no Amazonas: prêmio e lucro, dor e luta

 Em Combate e Prevenção à Tortura, Notícias

“O que você está sentindo? Hoje em Manaus ocorreu mais um desastre: a lei da vida foi traída, pisada, anulada. Se colocamos algumas vidas na série A, e outras na segunda categoria, estamos dispostos a aceitar que haja condições onde o índio possa valer menos, o negro possa valer menos, o estrangeiro (não branco, é claro!) possa valer menos. A estrada da discriminação leva longe. A cadeia encandeia: de um lado cega nossos sentimentos de piedade, do outro mostra com clareza que precisamos de luz, de reflexão. É noite para a minha alma, é noite também para o meu corpo. Hoje a noite partilho a reflexão sobre a escuridão”.

Padre João, ex-coordenador Estadual da Pastoral Carcerária de Manaus (26.05.2019)

Entre os dias 26 e 27 de maio de 2019, pelo menos 55 pessoas que estavam presas no Complexo Anísio Jobim (Compaj), no Instituto Penal Antônio Trindade (Ipat), na Unidade Prisional do Puraquequara (UPP) e no Centro de Detenção Provisória Masculino (CDPM1) perderam suas vidas nas mãos do Estado assassino. 

Dias anos antes, em janeiro de 2017, foram cerca de 56 vítimas. O projeto político de massacrar pessoas presas mostrou mais uma vez suas lâminas, que ceifam dezenas de vidas, todos os dias, todos os anos. 

O discurso oficial do Estado, acompanhado pela mídia, foi o mesmo: conflito de facção. Mas a verdade é que o próprio Estado e a empresa gestora das unidades escolheram deliberadamente exterminar as pessoas presas, mantendo-as naquele espaço insalubre e torturante, sem condições mínimas de vida. 

Mais do que crise ou episódio isolado, o massacre é constante. Enquanto lemos essa lembrança, mais vidas são torturadas e mortas pela arma prisional do Estado. O massacre, a bem da verdade, serviu de prêmio e lucro para a empresa administradora da unidade e para os gestores da política criminal.

  • Márcio André de Araújo Pinho, na época diretor do CDPM 1, continuou no cargo, depois foi realocado para o CDPM 2 e atualmente está premiado como coordenador adjunto da Coordenadoria do Sistema Penitenciário (Cosipe) da SEAP-AM.
  • Leandro Souza de Lima, diretor do Compaj durante o massacre, exerce atualmente um cargo comissionado de assessor nos quadros da SEAP. 
  • Fernando Maurício Pedrosa Castelo Branco, na época diretor do Ipat, continua servindo à Polícia Militar do Amazonas, no 1º Batalhão de Policiamento de Choque, no premiado posto de Capitão.
  • Jean Carlos Silva de Oliveira, diretor da UPP durante o massacre,  continuou na direção da unidade, foi realocado posteriormente para o CDPM 2, e continua no quadro de Oficiais da Polícia Militar do Amazonas, e atualmente está premiado como diretor da Casa do Albergado de Manaus. 
  • Marcus Vinícius Almeida, na época Secretário de Administração Penitenciária do Amazonas, foi premiado com o Comando-Geral da Polícia Militar do Amazonas (PM-AM), mediante a designação do Governador Wilson Lima (PSC).
  • Wilson Miranda Lima (PSC), então Governador durante o massacre, continua Governador e gerenciando a política criminal no estado. 

 

Em nota após o massacre, a Pastoral Carcerária Nacional afirmou que “O que acontece em Manaus agora, assim como os massacres de 2017, o Massacre do Carandiru em 1992 e tantos outros, não são uma exceção do sistema prisional, e sim parte do seu funcionamento. Não se trata, portanto, de uma ausência do Estado, mas de sua presença, por meio de um gigantesco sistema de encarceramento e controle, que coloca o Brasil na posição de 3º país que mais encarcera no mundo. As mortes destes últimos dias ocorrem em diferentes unidades prisionais privatizadas, todas administradas pela mesma empresa, a Umanizzare”.

A Umannizzare Gestão Prisional e Serviços, empresa privada que administrava todas as 4 unidades prisionais através do modelo cogestão, recebeu mais de R$ 800 milhões do Governo do Amazonas entre 2014 e 2019, como mostra apuração feita pela Brasil de Fato na época. No site da Receita Federal que reúne o Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas, a Umannizzare se apresenta ativa, com um capital social de R$62 milhões de reais, titularizada por Arleny Oliveira de Araújo e Regina Celi Carvalhaes de Andrade. 

Com o mesmo modus operandi, a dominação das unidades prisionais e a forma violenta de gerir o espaço carcerário passou para as mãos da RH Multi Serviços Administrativos, titularizada por Marilene Araújo Barbosa e Erika Borges Dalle Vedove. Filiais amazonenses da RH Multi – como as portadoras dos CNPJ 10.902.284/0002-46 e 10.902.284/0003-27 – foram titularizadas por LFJ Participações S/A (CNPJ 12.975.559/0001-16), cuja proprietária é Arleny Oliveira de Araújo, sócia da Umanizzare. 

O laço entre as empresas é evidente. Apesar da vestimenta formal ser distinta, a maquinaria de extração de lucro e produção de morte continua operando. 

O último contrato celebrado pela RH Multi com o Governo do Amazonas, com vigência de 01/08/2020 a 01/08/2025, previu o impacto total de R$ 683.401.713,32 aos cofres públicos pelos serviços de operacionalização e administração de sete unidades prisionais, dentre elas o Instituto Penal Antônio Trindade (Ipat) e a Unidade Prisional do Puraquequara (UPP). Por mês, o Estado pagará mais de R$ 11 milhões de reais para a empresa. Além dessa absurda quantia, a RH Multi ainda recebeu mais de R$ 7 milhões para gerir a Penitenciária Feminina de Manaus. 

Os valores estratosféricos, ao mesmo tempo em que são símbolos do enriquecimento ofertado às empresas que participam da matança de pessoas presas, são também fantasiosos e ilusórios, pois não são revertidos em condições mínimas e básicas de sobrevivência das pessoas encarceradas. A política de desestatização das unidades prisionais no Amazonas – e em todos os lugares – revela o quão ganancioso e desumano é matar as pessoas presas: assassina para se enriquecer. 

Mesmo a história recente tendo mostrado e comprovado que a finalidade lucrativa que perpassa todas as entidades burguesas é sinal de perversidade e morte, o Estado continua insistindo no enriquecimento de empresas em troca de vidas assassinadas. Mais do que isso, o Estado omisso sequer ousa imputar a responsabilidade pelas mortes a si mesmo, transferindo a causa para qualquer ficção inventada em suas narrativas. 

Eximindo-se de sua responsabilidade e depositando-a nas próprias vítimas do massacre, o Estado produz a “naturalização dos massacres, que passaram a ser vistos como episódios corriqueiros e inevitáveis no sistema prisional, deriva de uma certa axiomatização da morte e da violência nesses espaços. É desnecessário afirmar ou convencer o maior número possível de pessoas que certos corpos são matáveis e certas vidas são indignas de serem vividas, basta que o seu extermínio pareça um acidente, fruto de processos infinitamente complexos, sobre o qual há pouca ou nenhuma governabilidade política”, conforme escreveu Paulo César Malvezzi Filho em sua dissertação de mestrado intitulada Máquinas de massacre: A produção da morte e da sobrevivência no Compaj.

Mas nós não vamos mais admitir isso. Estamos lembrando dos 3 anos do massacre em Manaus porque precisamos inverter a narrativa do Estado e da burguesia. Precisamos virar a mesa e nos importar com as milhares de vidas que são ceifadas dentro de unidades prisionais, delegacias, viaturas todos os anos. Nos importar com as mães que choram em cima do caixão de seus filhes. E frente a essa monstruosidade estatal, precisamos estar juntes na luta por um mundo sem prisões e sem massacres.

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