Tramita no Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo representação que apura suposta violação ao princípio da colegialidade praticada pela juíza de segundo grau Kenarik Boujikian. O motivo: ela decidiu monocraticamente pela soltura de presos que estavam preventivamente encarcerados por mais tempo do que a pena cominada em suas sentenças.
Sob nenhum prisma é possível conceber esse processo, calcado nas razões que o motivam. Dentre os diversos aspectos que chamam a atenção no caso está o fato de a magistrada ser processada justamente por ter cumprido a lei.
Afinal, ela nada mais fez do que cessar injusta prisão, efetivando um dos mais basilares princípios constitucionais, o da dignidade da pessoa humana, preceito máximo de um Estado democrático de Direito.
Manter os indivíduos presos além do tempo previsto em sentença significa o desprezo absoluto por parte do Estado à liberdade do cidadão.
Se a administração pública é vexatoriamente omissa em lidar com as questões dos presos e de suas famílias, cabe ao Poder Judiciário intervir, como único capaz de restabelecer a ordem das coisas. Boujikian apenas reafirmou que a dignidade da pessoa humana é o princípio fundamental do Estado que vale para todos, presos ou não.
Outro aspecto de suma importância é que está em jogo uma das principais garantias conferidas aos magistrados para exercerem suas atribuições livres de pressões externas ou internas – a independência funcional. Por esse princípio, o juiz julga de acordo com sua consciência, não podendo ser tolhido no exercício da interpretação da lei.
Trata-se de uma garantia também da sociedade, pois esse é um requisito básico para assegurar que o juiz tenha mínimas condições de cumprir com suas atribuições. Afinal de contas, um juiz sem independência deixa de ser juiz.
Portanto, o caso revela-se um verdadeiro absurdo, razão pela qual está em curso grande movimento de solidariedade à juíza, encabeçado por diversas entidades que atuam em defesa dos direitos humanos e por parte expressiva da comunidade jurídica.
Entende-se que qualquer julgamento desfavorável à juíza representará um sério comprometimento das garantias que sustentam o Estado de Direito.
Ademais, é conveniente lembrar que a juíza processada é conhecida por suas posições garantistas, atua em prol dos direitos humanos, é uma das fundadoras da Associação Juízes Para Democracia e subscreve diversos artigos denunciando a situação precária no sistema prisional brasileiro, em especial os casos das mulheres encarceradas.
As decisões da magistrada, escoradas em normas internacionais de direitos humanos ratificadas pelo Brasil e por princípios constitucionais, estão em perfeita sintonia com seu trabalho de efetivação desses direitos no país e com a luta de diversas organizações que trabalham arduamente por um Estado mais justo e igualitário. Daí o estarrecimento desses atores que apontam o contrassenso do processo em curso.
Por fim, admitir qualquer punição à juíza que fez cessar injusta prisão é aceitar que um magistrado pode ser punido por fazer cumprir a lei. Seria uma lamentável decisão, sobretudo num momento em que os esforços estatais buscam métodos alternativos ao encarceramento.
Nunca é demais lembrar que o Brasil tem a quarta maior população carcerária do mundo, opera um sistema prisional com déficit de vagas e em condições precaríssimas.
Autores:
Willian Fernandes, advogado e vice-presidente da Comissão Justiça e Paz de São Paulo;
Marcos Fuchs, advogado e diretor adjunto do Conectas Direitos Humanos;
Padre Valdir João Silveira, coordenador nacional da Pastoral Carcerária.