Drogas: A necessidade da legalização

 Em Agenda Nacional pelo Desencareramento

Apresentamos a seguir a íntegra do artigo de Maria Lucia Karam, juíza aposentada e presidente do Leap Brasil, que foi exposto ao Fórum das Pastorais Sociais da Arquidiocese de São Paulo no mês de março.
Maria Lucia enfatiza que os integrantes do Leap são contra os efeitos danosos das drogas, mas que é preciso que haja legalização do uso para regular a produção, o comércio e consumo de todas as drogas.
“A proibição não é apenas uma política falida. É muito pior do que simplesmente ser ineficiente. A proibição causa danos muito mais graves e aumenta os riscos e os danos que podem ser causados pelas drogas em si mesmas”, consta em um dos trechos do artigo.

Drogas: a necessidade da legalização
Falo em nome da LEAP – a Law Enforcement Against Prohibition, que, no seu ramo brasileiro, se traduz como Agentes da Lei Contra a Proibição (a LEAP BRASIL). A LEAP é uma organização internacional, formada para dar voz a policiais, juízes, promotores e demais integrantes do sistema penal (na ativa ou aposentados) que, por sua vivência, percebem a falência e, mais ainda, os danos e os sofrimentos provocados pela atual política de proibição às selecionadas drogas tornadas ilícitas, por isso claramente se pronunciando pela legalização e consequente regulação da produção, do comércio e do consumo de todas as drogas.
Lembro que, quando esteve no Rio, por ocasião da Jornada Mundial da Juventude, o Papa Francisco falou em entrevista: “Gosto quando alguém me diz: ‘eu não estou de acordo’. Esse é um verdadeiro colaborador”. Efetivamente, nós da LEAP discordamos de algumas considerações externadas por ele sobre a proposta de legalização e gostaríamos de colaborar no tão necessário e urgente debate sobre esse tema das drogas.
Partimos, no entanto, de uma concordância com o Papa Francisco e com todos, cristãos ou não, que se preocupam com o potencial destrutivo das drogas e se solidarizam com o sofrimento advindo de seu consumo abusivo. Com efeito, logo no item 1 de nossa declaração de princípios[1], nós, integrantes da LEAP, deixamos claro que não incentivamos o uso de drogas e temos profundas preocupações com os danos e sofrimentos que o abuso dessas substâncias, lícitas ou ilícitas, pode causar.
No entanto, nós, integrantes da LEAP, percebemos que a proibição e sua política de “guerra às drogas” causam ainda maiores danos e sofrimentos.
As drogas que hoje são ilícitas, como a maconha, a cocaína, a heroína, foram proibidas, em âmbito mundial, no início do século XX. Nos anos 1970, a repressão aos produtores, comerciantes e consumidores dessas substâncias foi intensificada, com a introdução de uma política explicitamente fundada na guerra. Com efeito, a chamada “guerra às drogas” foi declarada pelo ex-presidente norte-americano Richard Nixon, nos Estados Unidos da América, em 1971, logo se espalhando pelo mundo.
Essa política explicitamente fundada na guerra tem se revelado incapaz de atingir o objetivo de eliminar ou pelo menos reduzir a disponibilidade das substâncias proibidas. Com efeito, passados 100 anos de proibição, com seus mais de 40 anos de guerra, não houve nenhuma redução na circulação de tais substâncias. Ao contrário, nesses anos todos, as selecionadas drogas tornadas ilícitas ficaram mais baratas, mais potentes, mais diversificadas e muito mais acessíveis do que eram antes de serem proibidas e de seus produtores, comerciantes e consumidores serem combatidos como “inimigos”.
A própria Organização das Nações Unidas (ONU) que, em 1998, prometia um mundo sem drogas em dez anos[2], posteriormente viu-se constrangida a reconhecer a expansão e diversificação do mercado das drogas ilícitas. Em relatório divulgado em março de 2014[3], o Secretariado de seu Escritório para Drogas e Crimes (UNODC) estimou que de 167 milhões a 315 milhões de pessoas entre 15 e 64 anos teriam usado uma substância proibida pelo menos uma vez no ano de 2011.
As apreensões realizadas em operações policiais, que, antes da declaração de “guerra às drogas” se faziam em quilos e, agora, se fazem em toneladas, além de revelarem a expansão da produção e do comércio, ao reduzirem momentaneamente a oferta, acabam por proporcionar uma imediata supervalorização das mercadorias, assim criando maiores incentivos econômicos e financeiros para o prosseguimento daquelas atividades econômicas ilegais.
Mas, a proibição não é apenas uma política falida. É muito pior do que simplesmente ser ineficiente. A proibição causa danos muito mais graves e aumenta os riscos e os danos que podem ser causados pelas drogas em si mesmas.
Desde logo, vale ressaltar que a “guerra às drogas” não é exatamente uma guerra contra as drogas. Não se trata de uma guerra contra coisas. A “guerra às drogas”, como quaisquer outras guerras, dirige-se sim contra pessoas: os produtores, comerciantes e consumidores das selecionadas substâncias proibidas. Seus resultados são mortes, prisões superlotadas, doenças contagiosas se espalhando, milhares de vidas destruídas, atingindo especialmente os mais vulneráveis dentre seus alvos – os pobres, marginalizados, não brancos e desprovidos de poder.
A proibição e sua guerra não se harmonizam com a ideia de direitos humanos. São conceitos incompatíveis. Guerras e direitos humanos não são compatíveis em nenhuma circunstância.
O mais evidente e dramático dos riscos e danos diretamente provocados pela proibição é a violência, resultado lógico de uma política baseada na guerra.
Não há pessoas fortemente armadas, trocando tiros nas ruas, junto às fábricas de cerveja, ou junto aos postos de venda dessa e outras bebidas. Mas, isso já aconteceu. Foi nos Estados Unidos da América, entre 1920 e 1933, quando lá existiu a proibição do álcool. Naquela época, Al Capone e outros gangsters trocavam tiros nas ruas, enfrentando a polícia, se matando na disputa do controle sobre o lucrativo mercado do álcool tornado ilícito, cobrando dívidas dos que não lhes pagavam; atingindo inocentes pegos no fogo cruzado.
Hoje, não há violência na produção e no comércio do álcool. Por que é diferente na produção e no comércio de maconha ou de cocaína? A resposta é evidente: a diferença está na proibição. Só existem armas e violência na produção e no comércio de maconha, de cocaína e das demais drogas tornadas ilícitas porque o mercado é ilegal.
No Brasil, como em outros países, grande parte dos homicídios está relacionada aos conflitos estabelecidos nas disputas pelo mercado ilegal. Outra grande parte dos homicídios no Brasil está relacionada a execuções sumárias em operações policiais de “combate” ao comércio varejista das drogas nas favelas. Nessa guerra, policiais e “traficantes” se embrutecem. A sanguinária “guerra às drogas” ensina, caleja e adestra para a violência, a crueldade, as mortes, os desaparecimentos forçados.
Os sobreviventes dessa guerra superlotam os cárceres. No Brasil, 27% do total de seus quase 600.000 presos são processados ou condenados por “tráfico” de drogas. Entre as mulheres, essa proporção chega à metade das presas. Em seis anos e meio (de dezembro de 2005, a partir de quando começaram a ser fornecidos dados relacionando o número de presos com as espécies de crimes, a junho de 2013), a proporção de presos processados ou condenados por “tráfico” de drogas triplicou (em dezembro de 2005 eram 9,1% do total dos presos brasileiros).
A proibição da produção, do comércio e do consumo das selecionadas drogas tornadas ilícitas foi instituída sob o pretexto de proteção à saúde. No entanto, é a própria proibição que paradoxalmente causa maiores riscos e danos a essa mesma saúde que anuncia pretender proteger. Com a irracional decisão de enfrentar um problema de saúde com o sistema penal, o Estado agrava esse próprio problema de saúde.
Com a proibição, o Estado acaba por entregar o próspero mercado das drogas tornadas ilícitas a agentes econômicos que, atuando na clandestinidade, não estão sujeitos a qualquer limitação reguladora de suas atividades. No mercado ilegal não há controle de qualidade dos produtos comercializados, o que aumenta as possibilidades de adulteração, de impureza e desconhecimento do potencial tóxico das drogas proibidas. A ilegalidade cria a necessidade de aproveitamento imediato de circunstâncias que permitam um consumo que não seja descoberto, o que incentiva um consumo descuidado e não higiênico, cujas consequências aparecem especialmente na difusão de doenças transmissíveis como a AIDS e a hepatite.
Além de criar a atração do proibido, acabando por incentivar o consumo por parte de adolescentes, a proibição dificulta o diálogo e a busca de esclarecimentos e informações entre estes e seus familiares e educadores. A proibição ainda dificulta a assistência e o tratamento eventualmente necessários, seja ao impor ineficazes e ilegítimas internações compulsórias, seja por inibir a busca voluntária do tratamento, ao pressupor a revelação da prática de uma conduta tida como ilícita. Muitas vezes, essa inibição tem trágicas consequências, como em episódios de overdose em que o medo daquela revelação paralisa os companheiros de quem a sofre, impedindo a busca do socorro imediato.
A proibição provoca danos ambientais, seja diretamente com a erradicação manual das plantas proibidas ou pior, com as fumigações aéreas de herbicidas sobre áreas cultivadas, como ocorreu e ainda ocorre na região andina, seja indiretamente, ao provocar o desflorestamento das áreas atingidas e levar os produtores a desflorestar novas áreas para o cultivo, geralmente em ecossistemas ainda mais frágeis.
Nós, integrantes da LEAP, acreditamos que é preciso pôr fim a essa falida e danosa política; acreditamos que é preciso legalizar e consequentemente regular a produção, o comércio e o consumo de todas as drogas.
Legalizar não significa liberação ou permissividade. Ao contrário. Legalizar significa exatamente regular e controlar, o que hoje não acontece, pois um mercado ilegal é necessariamente desregulado e descontrolado. Aliás, poder-se-ia mesmo dizer que “liberado” é exatamente esse mercado que floresce na ilegalidade imposta pela proibição: ao contrário do que acontece em um mercado legalizado, os chamados “traficantes” não estão submetidos a qualquer controle ou fiscalização sobre a qualidade dos produtos que fornecem; para obter maiores lucros, podem misturar a droga produzida e comercializada a outras substâncias ainda mais nocivas; não precisam informar qual o potencial tóxico da droga produzida e comercializada; não precisam fazer qualquer esclarecimento ou advertência aos consumidores sobre os riscos de seus produtos; estabelecem preços livremente; não pagam quaisquer impostos; não estão sujeitos a legislações trabalhistas, podendo empregar, como de fato empregam, até mesmo crianças em suas atividades de produção e comércio; vendem seus produtos onde quer que estejam consumidores; não precisam controlar a idade dos compradores. Legalizar significa pôr fim ao “tráfico”, afastando do mercado esses descontrolados e “liberados” agentes que agem na clandestinidade e devolvendo ao Estado o poder de regular, limitar, controlar, fiscalizar e taxar a produção, o comércio e o consumo dessas substâncias, da mesma forma que o faz em relação às drogas já lícitas, como o álcool e o tabaco.
Nós, integrantes da LEAP, queremos uma política que reduza os efeitos nocivos das drogas e não uma política que soma a esses efeitos violência; mortes; encarceramento massivo; racismo e outras discriminações; agravamento de problemas de saúde; danos ambientais; violação de direitos humanos fundamentais.
Legalizar e consequentemente regular a produção, o comércio e o consumo de todas as drogas, para assim pôr fim a essa falida, danosa e dolorosa política, é a única forma de possibilitar que os problemas advindos do abuso de tais substâncias sejam enfrentados não com sanguinárias, destrutivas e inúteis guerras, mas sim com soluções nascidas da compreensão, da compaixão e da solidariedade.

CITAÇÕES DO TEXTO
[1] Ver www.leapbrasil.com.br
[2] Na Sessão Especial da Assembleia-Geral das Nações Unidas (UNGASS) de 1988 foi lançado o slogan que se tornou famoso “A Drug-Free World – We Can Do It”, transmitindo a anunciada intenção de erradicar todas as drogas ilícitas – da maconha ao ópio e à coca – até 2008.
[3] Relatório do Secretariado para a 57ª Sessão da Comissão de Drogas Narcóticas (CND): “World situation with regard to drug abuse”. http://www.unodc.org/unodc/commissions/CND/
[4] Fonte: Departamento Penitenciário Nacional do Ministério da Justiça.

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