Justiça Restaurativa no Brasil: uma abordagem transformadora e urgente

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Diante da crise estrutural do sistema penal brasileiro — marcado por seletividade, superencarceramento e baixa eficácia na prevenção da violência — a Justiça Restaurativa surge não apenas como alternativa, mas como uma necessidade urgente. Longe de ser mera técnica de resolução de conflitos, trata-se de uma mudança profunda na forma de compreender o crime e de buscar justiça.

Ao invés de focar exclusivamente na punição, a Justiça Restaurativa propõe escuta, responsabilização e reparação. Parte do princípio de que o delito não é apenas uma violação da lei, mas um rompimento de vínculos e relações humanas que precisa ser restaurado. Seu processo é voluntário, conduzido por facilitadores capacitados, e busca envolver todas as partes afetadas: vítima, ofensor e comunidade.

Fundamentos e marcos legais

A abordagem restaurativa está em consonância com princípios constitucionais como a dignidade da pessoa humana (Art. 1º, III), a igualdade e o acesso à justiça (Art. 5º), e a construção de uma sociedade mais justa e solidária (Art. 3º, I). Além disso, está alinhada ao conceito de Justiça Multiportas, que reconhece a diversidade de caminhos possíveis para a resolução de conflitos.

No plano legal, a Justiça Restaurativa tem avançado significativamente no Brasil. A Lei nº 13.140/2015 regulamenta a mediação como método autocompositivo, enquanto a Resolução nº 225/2016 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) institui a Política Nacional de Justiça Restaurativa no Judiciário, promovendo diretrizes para sua implementação em todo o país.

Experiências que inspiram

Diversas iniciativas práticas têm mostrado os impactos positivos da Justiça Restaurativa no sistema penal e em outros contextos. Em Porto Alegre, jovens em conflito com a lei participam de círculos de diálogo com resultados expressivos na redução da reincidência. Em estados como São Paulo, Paraná, Goiás, Ceará, Maranhão e Rio Grande do Sul, mulheres privadas de liberdade relatam transformações pessoais profundas ao vivenciarem processos restaurativos. 

Essas práticas também se articulam com instrumentos legais como a remissão de pena, prevista na Lei de Execução Penal, ampliando o escopo de atividades reconhecidas como educativas no sistema prisional.

A atuação da Pastoral Carcerária Nacional

Nesse cenário, a atuação da Pastoral Carcerária Nacional se destaca como uma das maiores impulsionadoras da Justiça Restaurativa no país. Presente em todos os estados, esse Pastoral sociotransformadora da Igreja Católica vinculado à CNBB promove, de maneira contínua, ações que colocam a dignidade humana no centro do debate.

A Pastoral tem investido intensamente na formação de facilitadores e na disseminação dos CCPAZ – Círculos de Construção de Paz, com temáticas variadas e inovadoras. Esses círculos não se limitam ao ambiente prisional: estão sendo implementados em comunidades, grupos de apoio, ONGs, populações quilombolas, com grupos de pessoas LGBTQIAPN+, pastorais sociais, movimentos eclesiais, catequese, escolas e muitos outros espaços, demonstrando que a Justiça Restaurativa ultrapassa os muros das prisões.

As formações garantem a presença de agentes preparados para facilitar e criar núcleos de atendimento às mais diversas demandas sociais. Além disso, a Pastoral oferece cursos sobre comunicação não violenta, autoconhecimento, autocontrole, fortalecimento de vínculos, mediação de pequenos conflitos, celebração da vida e outras temáticas fundamentais para a construção de uma convivência mais pacífica e restauradora.

Como parte desse esforço, a Pastoral Carcerária Nacional também disponibiliza dois cadernos de círculos especialmente desenvolvidos para multiplicar práticas restaurativas em diversos contextos: 

  • O primeiro caderno contém 100 círculos prontos para aplicação, com temáticas variadas que vão desde resolução de conflitos até desenvolvimento pessoal e comunitário.
  • O segundo caderno oferece 24 círculos específicos para pessoas em processo de superação de dependência de substâncias lícitas e ilícitas, promovendo acolhimento, fortalecimento emocional e estratégias de enfrentamento restaurativo.

Esse trabalho, muitas vezes realizado em silêncio e longe dos holofotes, tem mudado vidas. O que a Pastoral realiza é justiça na prática — não apenas institucional, mas comunitária, espiritual e profundamente transformadora.

Romper com a cultura da punição

Apesar dos avanços, ainda há forte resistência à adoção plena da Justiça Restaurativa. A cultura punitiva permanece enraizada no imaginário coletivo e nas instituições. Para muitos, “fazer justiça” ainda significa ver o infrator punido, mesmo que isso não resolva as causas nem as consequências da violência.

É preciso romper com essa lógica. A violência não se combate com mais violência, mas com escuta, empatia, responsabilização e reintegração. A Justiça Restaurativa não pretende substituir o sistema penal em sua totalidade, mas oferece um caminho complementar, ético e eficaz, especialmente em casos onde o sistema tradicional falha.

Uma escolha urgente e possível

O Brasil vive um momento decisivo. Diante das crescentes desigualdades, da descrença nas instituições e da polarização social, a Justiça Restaurativa propõe algo radical: reconstruir laços, restaurar a confiança e prevenir novos danos.

Ela nos convida a escolher entre punir ou restaurar, entre excluir ou reintegrar, entre repetir os erros ou buscar novas soluções. Seu avanço no Brasil está sendo viabilizado por marcos legais, experiências bem-sucedidas e pela atuação incansável de entidades como a Pastoral Carcerária, que reafirma diariamente o potencial de transformação das práticas restaurativas.

A pergunta que fica é: teremos coragem de mudar a forma como fazemos justiça?

 

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