Quando os Bispos do Brasil pensaram na Campanha da Fraternidade deste ano de 2024, tinham diante de si um cenário de alguma forma bem complicado devido à situação sócio político religiosa, cuja fragmentação e conflitualidade exigiam deles uma atitude de muita sabedoria, prudência e ao mesmo tempo profecia. Daí o surgimento do tema: FRATERNIDADE E AMIZADE SOCIAL e o lema: “Vós sois todos irmãos e irmãs” (cf. Mt 23,8), com o Objetivo Geral de – Despertar para o valor e a beleza da fraternidade humana, promovendo e fortalecendo os vínculos da amizade social, para que, em Jesus Cristo, a paz seja realidade entre todas as pessoas e povos. –
O Tempo para concretizar o sonho
Sonhar é sempre bom, apresentar propostas que tenham um impacto sobre a realidade torna-se um pouco mais complicado, mas mesmo assim, há sessenta anos algumas pessoas optaram, antes localmente e depois nacionalmente, que um tempo para sonhar e colocar a mão na massa eram os quarenta dias da Quaresma. Nasceu assim, como concretização da conversão, da mudança de vida e da própria realidade a Campanha da Fraternidade, que dava uma forma real ao tripé da oração, do jejum e da esmola. Estávamos naquele momento no processo Conciliar que deu à Igreja um novo respiro, um novo vigor e ao mesmo tempo maior proximidade com a realidade vivida pelas pessoas. Isso se refletiu também na caminha eclesial quaresmal da Igreja brasileira, que vai refletindo primeiramente sobre sua vida e atuação para depois passar a olhar a realidade e finalmente a ouvir o grito do pobre como “opção preferencial” para sua caminhada que de espectadora se torna sociotransformadora.
A Campanha da Fraternidade
Para compreender a escolha da Campanha da Fraternidade como meio nada melhor que a letra do hino da Campanha de 2002:
A necessidade era tanta e tamanha
Que a fraternidade saiu em campanha
Andou pelos vales, subiu as montanhas
Foi levar o seu pão
A dor era tanta, a injustiça tamanha
Que a luz de Jesus que o seu povo acompanha
O iluminou pra viver em campanha
Em favor dos irmãos
Um só coração e uma só alma
Um só sentimento em favor dos pequenos
E o desejo feliz
De tornar o país
Mais irmão e fraterno
Vão fazer de nós
Povo do Senhor
Construtores do amor
Operários da paz
Mais fiéis a Jesus
Vão fazer nossa igreja
Uma Igreja mais santa
E mais plena de luz
Erguer as mãos com alegria
Mas repartir também o pão de cada dia!
Da Inimizade à Fraternidade e Amizade Social
A constatação que a Campanha faz é: a não fraternidade, a inimizade social, se tornaram as lentes por meio das quais uma boa parcela de pessoas e de grupos olham para a sociedade. Além disso o olhar individual se tornou predominante chegando ao ponto que, não mais se percebe a complementariedade entre individualidade e fraternidade, e que um aspecto sem o outro é incapaz de gerar felicidade, paz, vida e segurança. Quando somente o “eu” é a referência, o outro se torna estranho e perde lugar. Assim, quando nossas diferenças são entendidas como ameaças e não encontram nossos esforços em construir fraternidade, as relações humanas se rompem e a morte encontra espaço para existir entre nós.
Enfim estamos diante de um hiper individualismo fruto do esgotamento epocal que atinge os fundamentos do convívio social e dos relacionamentos, gerando sofrimentos e rupturas mesmo com as outras criaturas e com a própria Mãe Terra. Essa é a síndrome de Caim pela qual não mais nos sentimos responsáveis uns pelos outros, porque matamos o irmão em nosso coração. Como constatamos temos em nosso tempo um paradoxo: vivemos fisicamente próximos, mas existencialmente distantes. Não buscamos o encontro com o outro, mas buscamos o outro como um espelho que reforce as nossas concepções.
Contrapontos bíblicos [ou da Sagrada Escritura]
A Sagrada Escritura nos oferece alguns contrapontos que nos indicam a passagem da Inimizade para a amizade social e a fraternidade. O mal que penetra no mundo e tem suas raízes na quebra das relações fraternas. Ele anseia pelo lugar de Deus e faz com que Eva quebre o pacto de harmonia e rompa as relações: com Adão, porque abre a ele um caminho pelo qual a serpente o possa também seduzir escolhendo outra lógica de vida.
A história de José diz-nos que “O drama do homem diante de Deus é, inevitável e necessariamente, também o drama do homem perante seus irmãos. Certo homem perguntou a José: ‘Que procuras?’ e ele respondeu: ‘Procuro meus irmãos’ (Gn 37,15-16). Os irmãos não procuram José, ao contrário, odeiam-no até a morte. Mas Deus procura irmãos reconciliados entre si e, secretamente, os conduz a ‘fazer a paz’: descobrirão então que foram procurados e foram achados por Deus!”
A reconciliação de José com os irmãos se revelou parte do projeto divino que tirou Jacó e sua família da fome para dar continuidade à história da primeira Aliança. Encontramos um texto paralelo em Lucas na narração do Pai Misericordioso que, recebe e acolhe o retorno do filho mais novo com a melhor túnica, um anel no dedo e sandálias nos pés (cf. Lc 15,22).
Uma Nova Linguagem
Esta é a nova linguagem que a Campanha da Fraternidade nos apresenta, a mesma de José para com seus irmãos. É a linguagem da Escola de Perdão e Reconciliação, [Es.Pe.Re.], da Justiça Restaurativa que muda a linguagem violenta e punitivista em não violenta e restauradora de relações. Os irmãos de José encontram no irmão o rosto concreto da fraternidade que acolhe e perdoa. No Pai misericordioso, àquele filho, que era perdido, morto, é por ele resgatado para se tornar um homem revestido de nova dignidade, com um novo nome e, ainda, herdeiro de sua casa.
O Processo Restaurativo
Na história do Pai misericordioso existe também outro filho, o mais velho que, não aceita a identidade única do irmão, o processo restaurativo, o restabelecimento das relações perdidas, a festa — sinal claro da comunhão, da alegria e da celebração fraterna —, ele resolve isolar-se e ficar de fora. No diálogo com o pai, ele demonstra não aceitar que o irmão seja diferente dele e pensa que sua filiação deveria ser manifesta de igual forma: na permanência, na fidelidade ininterrupta, na independência da misericórdia do pai. O Pai, em Jesus, torna incorrupta a relação conosco porque, nele, nos faz (re)encontrar sua misericórdia de forma plena e definitiva.
Conversão = Reconciliação, Restauração, Novas Relações: Fraternidade e Amizade Social
Todos concordam, até quem não compactua com a Campanha da Fraternidade que, a palavra “CONVERSÃO” é fundamental na Quaresma, só que as lentes com as quais se enxerga são diferentes, porque muitos só olham para o negativo, para o sentido antigo de “expiação” esquecendo a parte de perdão e acolhida que está ínsita na motivação que faz surgir este tempo intenso, forte, favorável que, desabrocha na vida nova da manhã da Ressurreição. Por sua vez a palavra conversão vem do grego “METANOIA” que significa literalmente: mudança da mente, diríamos da maneira de pensar e consequentemente de vida.
A Campanha da Fraternidade nos sugere mais duas histórias para que entendamos isso: a de Rute com a sogra Noemi e a de Paulo com seu amigo Filemon.
Rute, ao contrário de Órfã, a outra nora, decide de ficar estabelecendo uma aliança com Noemi, atitude de compaixão, identificação e empatia para com alguém que está na mesma situação que ela, na viuvez, e que não tem melhores perspectivas. “Teu povo é meu povo, teu Deus é meu Deus. Onde morreres, lá morrerei e lá serei sepultada” [Rt 1,17]. Não sabemos os motivos que induziram ela a permanecer, mas ela devolve vida a Noemi e lhe permite reencontrar a bênção de Deus, que se manifesta na descendência. A história de Rute e Noemi ilumina o significado da amizade social. Só é possível porque são superados os limites de sangue e etnia que, na sociedade atual, são manipulados para subsidiar a indiferença e o descaso.
A segunda história é contida na Carta de Paulo a Filêmon. Em nenhum escrito de Paulo conseguimos apreender tanto da intensidade das amizades que ele vai construindo em suas viagens pelas comunidades. São dois os belos vínculos que nela se registram: entre Paulo e Onésimo e entre Paulo e Filêmon. Com Onésimo, a amizade nasce da solidariedade de um escravo para com um preso — duas pessoas que não têm muito a oferecer, mas que encontram o tesouro da fé para partilhar. Dele, Paulo diz: “Ele é o meu próprio coração” (Fm 12). Paulo poderia escolher de dar uma ordem a Filêmon sabendo que Filemon obedeceria. Mas ele faz uma bela opção, prefere apelar ao seu amor.
É belo ver em que se apoia a amizade verdadeira, é sinal de esperança lembrar que o amor continua tendo mais força que a ordem e a imposição. Em nome da amizade, até a relação de escravidão pode ser desfeita. A amizade de Rute resgata Noemi; a amizade de Paulo resgata Onésimo. A amizade social, portanto, é reconstrução de relações que superam a dominação e a exploração.
E enfim a partir destes belos exemplos o texto da comunidade de Mateus, onde diante da conduta dos fariseus responde com a fraternidade, e onde o horizonte da lei, por todos conhecida é o próprio Jesus. Ele eleva os laços humanos a um nível muito mais alto: ao nível da fraternidade universal. Desse modo, fé e fraternidade se conectam irrenunciável e irreversivelmente.
É na própria relação fé /fraternidade que se inscrevem as novas relações humanas e sociais, e onde se insere também um novo olhar de justiça divina/misericórdia, e têm sua raiz novas relações, não mais baseadas sobre a força, sobre o maior, sobre prescrições autoritárias e opressoras, mas na corresponsabilidade. O perdão e a corresponsabilidade, alicerces da Justiça Restaurativa, encontram no amor o compromisso da justa medida que restaura, que devolve dignidade e cria laços de confiança e de amizade social transformando até a fala em não violência e o nosso universo em Terra Sem males, ou melhor num mundo sem prisões concretização da Fraternidade Social e Universal.
Essa é a verdadeira conversão, transformar nosso silêncio em Grito de Fraterna Amizade Social.