A frase que dá título a esta coluna é de Marcelo Barros.
Não apenas o início de um novo ano, de um novo ciclo, mas de um novo paradigma, de um novo tempo. Tempo de semeaduras marcadas pelo deserto, pelas intempéries que temos vivido nos últimos 4 anos em solo brasileiro. O ano inicia com o verbo ESPERANÇAR sendo conjugado nos passos do novo governo, mas também com os verbos RESISTIR, INSISTIR, PERMANECER, RECONSTRUIR, logo nos primeiros dias de janeiro.
Nesta reflexão, gostaríamos de propor um verbo que julgamos fundamental para que este novo paradigma caminhe para além dos grupos que já o assumem em sua caminhada. Na direção de dar as mãos para além das ‘bolhas’, olhando nos olhos e dialogando com irmãs e irmãos que pensam e vivem de forma diferenciada seus saberes e experiências: o verbo RECONCILIAR.
Será que a espiritualidade libertadora pode caminhar com o verbo RECONCILIAR?
Estamos, com certeza, diante de uma das mais profundas convocações que o Espírito Divino nos traz. Ela nos chega através das vozes, dos corpos, das memórias, das narrativas de desencontros, de violação de direitos, de rupturas afetivas e familiares, de atitudes de violência em todas as suas nuances, que vão desde uma simples indiferença até a exclusão e a eliminação das diferenças.
Apenas para colocar alguns desses desafios diante de nossos olhares atentos e nos convidar a refletirmos sobre a emergência de um processo de reconciliação, retomemos alguns que estão em nossa memória dos últimos tempos:
- a cultura de violência e de ódio nas mídias;
- o descaso e perseguição com os irmãos e irmãs em situação de rua;
- a questão agrária no Brasil e os conflitos frequentes com todas as suas terríveis consequências;
- a violência cotidiana contra os povos indígenas;
- os imensos desencontros e incompreensões com a comunidade LGBTQIA+;
- o aprofundamento do racismo estrutural com todas as suas consequências, como o genocídio da juventude negra e a violência contra as tradições de matrizes africanas;
- o crescimento da misoginia, da violência contra as mulheres;
- os conflitos que foram acirrados com as disputas ideológicas da última eleição em nosso chão comum.
Sim, imagino que você está pensando no quanto essa convocação é complexa, profunda, e exige uma construção pedagógica, social, que pode levar décadas. Mas aqui estamos nós, neste momento, ouvindo vozes e corpos irmãos, e nos perguntando como efetivamente ‘dar as mãos’ a essas situações. A espiritualidade libertadora nos chama para o hoje, para o agora, para o momento presente. São situações cotidianas, dramáticas, que nos colocam diante de muita vulnerabilidade. Então, onde está nossa potência? Como nos empoderarmos para que não paralisemos diante de tanta fragilidade e dor?
Nossa reflexão deseja propor uma profissão de fé naquilo que nos integra, que nos une, que nos congrega, que é o fato de sermos humanos, com uma espiritualidade potente, que pode ser resgatada e reconduzida à comunhão, nesses tempos em que se investiu tanto na desagregação, nas intolerâncias e ausência de diálogo. Sim, pode ser diferente, vamos tentar?
Sabemos que a violência vem assumindo muitas faces, fala-se até de uma ‘cultura de violência’. Por isso mesmo, trazemos seu contraponto, que é a ‘cultura de paz’.
Nesta breve reflexão, abordamos apenas um dos caminhos pedagógicos para essa mudança de paradigma. Estamos falando sobre as formas de comunicação: sobre buscar informações, sobre transmitir informações, sobre cuidado com a fala, sobre atenção na escuta, sobre formas diferentes de expressar o que sentimos e pensamos, sobre a construção de interações de linguagens, de corpos, de histórias de vidas, de visões de mundo, sobre encontrarmos as divergências, mas também as convergências, nas formas de comunicação.
O caminho da reconciliação é também o de conjugar todos esses verbos e, além disso, assumirmos uma nova postura. É um caminho de repensar a nós mesmos, nos percebermos não como donas e donos de uma verdade única, mas como pssíveis mediadores. Somos capazes de fazer uso de estratégias e meios para construir espaços que potencializem a tolerância, o respeito, os pontos em comum e, ao mesmo tempo, o diálogo crítico, o discernimento ético, as buscas comuns pela paz, pela justiça, pelas vidas para todes.
É nosso querido monge e amigo Marcelo Barros quem nos convoca, mais uma vez para conjugarmos juntos o verbo reconciliar. Temos muitos caminhos já percorridos à nossa disposição como, por exemplo, a Não-Violência Ativa, na qual Gandhi, Dom Hélder, Luther King, Bernhard Häring militaram, integrando a espiritualidade e a militância. Um outro projeto disponível para nossa formação é o da Comunicação Não-Violenta, trabalho desenvolvido pelo dr. Marshall Rosenberg, e assumido por alguns grupos em nosso chão comum, por exemplo, pela Ecopaz, com Sílvio Bedin e uma equipe linda e muito bem preparada para nos oferecer esse caminho pedagógico e espiritual. E aqui, nesta coluna, temos tratado especialmente da Espiritualidade Libertadora, como um caminho de comunhão nas fés, nas tradições, nas expressões religiosas em sua pluralidade e capacidade de enredar um mutirão pela paz e diálogo em uma sociedade hoje dividida.
Nos darmos conta de tudo isso nos conduz a um olhar sobre nós mesmos, uma autoavaliação. Percebemos que a dificuldade de diálogo e a intolerância se tornaram solo cultural no qual estamos todos imersos e, muitas e muitas vezes, apenas reproduzimos mimeticamente, de forma inconsciente, reproduzindo adversidades e intolerâncias.
Escutemos uma necessidade que vem de muitas dimensões de nossa Mãe Terra – a necessidade de amorosidade e diálogo, e nos coloquemos no caminho do verbo reconciliar. Como diz ainda hoje dom Hélder:
Põe o ouvido no chão
e interpreta os rumores em volta.
Predominam
passos inquietos e agitados,
passos medrosos na sombra,
passos de amargura e de revolta…
Nem começaram ainda
os primeiros passos de esperança.
Cola mais teu ouvido à terra.
Prende a respiração.
Solta as antenas anteriores
0 Mestre anda circulando.
É mais fácil que falte
nas horas felizes
do que nas duras horas
dos passos incertos e difíceis…