No dia 23 de dezembro de 2022, ao fim do seu mandato presidencial, Jair Bolsonaro decretou seu último indulto natalino. O instrumento tem como objetivo conceder a determinadas pessoas presas o perdão; no entanto, o indulto deste ano foi utilizado para algo além do seu propósito: o ex-presidente concedeu perdão para crimes que tenham sido cometidos há mais de 30 anos por policiais condenados, quando os atos não eram considerados hediondos.
O decreto, que tipicamente é concedido a presos idosos ou com doenças terminais, desta vez pode ser benéfico aos responsáveis pelo Massacre do Carandiru. O processo não é automático, mas o advogado de defesa dos policiais que participaram do massacre, Eliezer Pereira Martins, já entrou com o pedido de trancamento da ação penal.
No entanto, o indulto está sendo questionado e avaliado como inconstitucional pelo Ministério Público, que enviou uma representação ao Procurador-Geral da República (PGR), Antônio Augusto Aras.
O assessor jurídico da Pastoral Carcerária Nacional, Lucas Gonçalves, explica que a parte do indulto que beneficiaria os policiais responsáveis pelo massacre do Carandiru deve ser considerada inconstitucional por alguns motivos.
“Os crimes cometidos pelos policiais durante o massacre podem ser considerados hediondos, tendo em vista a crueldade. Por serem crimes hediondos, não podem ser perdoados por indulto, com base na Constituição Federal. Além disso, não seria cabível indultar pessoas certas e determinadas, como é o caso dos policiais do massacre”.
O advogado acrescenta que o indulto serve para perdoar comportamentos gerais, não específicos e não seria possível indultar crimes que ainda não foram julgados, já que os policiais estão respondendo ao processo no Tribunal de Justiça de São Paulo.
Lucas informa que a Comissão considera proibida a concessão de perdão para crimes contra a humanidade, como no caso do massacre.
“Por último e o mais importante, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) recomendou no Relatório 34/00, Caso 11.291, Vítimas do Massacre do Carandiru x Brasil, que o Estado Brasileiro é obrigado a julgar e responsabilizar os autores do massacre e a reparar as famílias, impossibilitando a concessão do indulto”.
O sobrevivente do massacre ocorrido há 30 anos, Kric Cruz, hoje escritor e educador, confessa não ter ficado surpreso com a ação de Jair Bolsonaro: “essa decisão governamental do ex-presidente não me surpreende. Ele mostra todo seu caráter e arrogância em cima das pessoas humildes, pobres e periféricas”.
Kric defende que apesar do uso da religião em seu discurso político, Bolsonaro não segue a palavra de Jesus e não veio para pregar o evangelho. “Ele faz uso de palavras contrárias vindas do inimigo”.
Ele reflete que injustiças já ocorrem há séculos, desde a escravidão, e que o governo autoritário da ditadura militar foi responsável pela propagação de torturas e mortes, e reforça que os atos continuam mesmo em uma democracia.
Em entrevista concedida ao site da PCr, Kric relatou como foi o dia do massacre do Carandiru:
Não se pode dizer que o preso confrontou a Polícia Militar, nos laudos e nas provas mostra que morreram com tiro na nuca. Então quando começou a entrada da PM, geralmente você ouve o barulho deles entrando, a tendência é eles sacarem as armas e revistarem, os presos vão saindo e eles vão batendo, e você escuta um “ai, ai, ai”. Naquele dia houve um silêncio total, e dali a pouco um monte de tiro, mas muito tiro, aquele grito sufocante, que a pessoa começa a gritar mas logo já morreu, você vê que foi um grito que secou.