“Há tempos o colapso do sistema prisional de Minas Gerais vem sendo gestado na esteira de um processo massivo de encarceramento, que triplicou a população carcerária do Estado num período de dez anos, passando de 14 mil, em 2003, para 46.500, em 2013, sendo que, atualmente, este número já superou a marca dos 60 mil”.
O alerta é dado pela Pastoral Carcerária Nacional e a PCr do Estado de Minas Gerais, em carta aberta, datada de 20 de maio, direcionada às autoridades máximas do Executivo, Legislativo e do Judiciário mineiro.
A Pastoral elenca, ainda, uma série de medidas a serem tomadas pelas autoridades, entre as quais a redução da população prisional, suspensão imediata de novas vagas nas prisões, fortalecimento da atuação da Defensoria Pública, implantação de audiências de custódia, fim das revistas vexatórias e reversão do processo de privatização do sistema penitenciário mineiro. Abaixo segue a íntegra da carta.
Pastoral Carcerária Nacional
Pastoral Carcerária do Estado de Minas Gerais
Ao Exmo. Sr. Governador do Estado de Minas Gerais
Ao Exmo. Sr. Presidente do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais
Ao Exmo. Sr. Presidente da Assembleia Legislativa do Estado de Minas Gerais
Ref.:
CARTA ABERTA ÀS AUTORIDADES MINEIRAS SOBRE O SISTEMA PRISIONAL
Com as prisões mineiras ganhando as manchetes da imprensa local e nacional, com notícias de mortes, rebeliões e superlotação, finalmente veio à tona uma triste realidade de violações de direitos e garantias fundamentais no Estado, que, entretanto, não é nova para aqueles que já conhecem o seu sistema carcerário.
Há tempos o colapso do sistema prisional de Minas Gerais vem sendo gestado na esteira de um processo massivo de encarceramento, que triplicou a população carcerária do Estado num período de dez anos, passando de 14 mil, em 2003, para 46.500, em 2013, sendo que, atualmente, este número já superou a marca dos 60 mil.
Este grande encarceramento se sustenta no uso abusivo de prisões provisórias, que já correspondem a 49% do total, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça, no desrespeito sistemático aos direitos daqueles que já cumprem pena, na sonegação de meios efetivos de defesa para os mais pobres e, sobretudo, numa seletividade escancarada do nosso sistema penal, que tem como alvo preferencial nossos jovens, pretos e periféricos.
Nas prisões de Minas Gerais, onde campeiam denúncias de agressões e tortura, agentes penitenciários encapuzados, armados e com cães realizam tarefas de rotina, enquanto advogados pagos por empresas de administração penitenciária e pela própria Secretaria de Estado de Defesa Social substituem ilegalmente a Defensoria Pública na orientação jurídica e defesa dos presos pobres em procedimentos disciplinares. Além disso, mulheres ainda dividem presídios com homens, em flagrante violação da legislação vigente, e a revista vexatória continua violentando semanalmente dezenas de milhares de familiares de pessoas encarceradas. Como se não bastasse, a prestação de serviços básicos, como saúde, trabalho e educação é ínfima, e soma-se a outras incontáveis violações de direitos.
No amanhecer de um governo dito progressista, nunca se reprimiu e prendeu tanto, e a resposta prometida ao caos instalado é justamente a intensificação das políticas que conduziram o Estado ao desastre vigente. Promete-se a construção de 4.000 novas vagas no sistema penitenciário com as famigeradas PPP’s e, pasmem, até transformação de escolas e outros prédios públicos desocupados em carceragens. Enquanto isso, o déficit de vagas cresce diariamente, já estando na casa dos 30.000, colocando em cheque qualquer iniciativa que insista na construção de novos presídios ao invés da redução da população prisional.
O Judiciário, por sua vez, responsável em igual medida pelo atual quadro de descalabro, limita-se a atuar como o escriba do sentimento de vingança e justiçamento que paira na sociedade, enchendo as masmorras mineiras e dando um verniz de legalidade ao encarceramento de seres humanos em condições de total degradação.
Neste cenário, com o esgotamento das possibilidades de gestão da barbárie prisional, faz-se necessário combater radicalmente a atual política de encarceramento em massa, que não apenas é absolutamente ineficaz para coibir a criminalidade, como é fator gerador de violência e exclusão. Assim, reafirmamos os termos da Agenda pelo Desencarceramento (https://carceraria.org.br/agenda-pelo-desencarceramento.html), elaborada por diversas organizações e movimentos, e propomos as seguintes medidas de curto e médio prazo:
- Suspensão imediata da construção de novas vagas;
- Pactuação entre Executivo, Judiciário e Legislativo estaduais de metas para a redução da população prisional, mediante ampla consulta e participação da sociedade civil;
- Fortalecimento da Defensoria Pública, para que a instituição esteja presente em todas as comarcas e nas unidades prisionais, inclusive com a criação da Ouvidoria externa, conforme previsto na Lei Complementar n.º 132/2009, e, enquanto não houver Defensores em número suficiente, que o atendimento, orientação jurídica e defesa em procedimentos disciplinares dos presos sejam realizados por advogados conveniados com a própria Defensoria Pública, de forma estritamente temporária, e sob sua supervisão e controle diretos;
- Implantação imediata da audiência de custódia;
- Concessão de regime mais benéfico para aqueles que não progrediram por ausência de vagas no regime semiaberto, conforme proposta na Súmula Vinculante n.º 57, em trâmite no STF;
- Fim imediato da revista vexatória;
- Criação de uma Ouvidoria externa do Sistema Penitenciário, nos termos da Resolução n.º 4/2014 do CNPCP;
- Fim do uso de tornozeleiras como pena adicional para aqueles que se encontram no regime semiaberto e aberto;
- Fim dos presídios mistos de homens e mulheres, onde as presas são tratadas como uma minoria dentro de uma população já excluída e privada de serviços básicos;
- Incentivo a formas comunitárias e horizontais de resolução de conflitos, como a Justiça Restaurativa;
- Mutirão específico para casos de indulto e comutação de pena;
- Reversão do processo de privatização do sistema penitenciário mineiro.
Por fim, certos de que estas medidas, assim como as demais elencadas na referida agenda nacional, são passos importantes para tratar de um problema extremamente mais profundo e complexo, mas que não esgotam, nem limitam outras possíveis iniciativas, rogamos para que as autoridades públicas mineiras tenham a coragem de quebrar este ciclo vicioso de aprisionamento, exclusão e violência, e coloquem um fim nesta política desumana de encarceramento em massa.
Por um mundo sem cárceres!
Belo Horizonte, 20 de maio de 2015,
Pastoral Carcerária do Estado de Minas Gerais
Pastoral Carcerária Nacional