O título não é de minha autoria. É de um editorial de Reinaldo Azevedo, publicado pela Folha de São Paulo no último dia 10 de janeiro. O texto traz uma reflexão sobre a violência letal no Brasil e a crise do sistema carcerário maranhense. A imprensa tem falado dela nas últimas semanas. Membros de duas facções disputam o controle do presídio de Pedrinhas, em São Luis, capital do Maranhão.
As imagens divulgadas pelos meios de comunicação estimulam um misto de horror e de indignação. Corpos de presos assassinados pelos próprios colegas com requintes de crueldade, cabeças cortadas e expostas como troféus, denúncias de abusos supostamente cometidos por agentes públicos, relatos de estupros contra familiares dos internos são alguns dos ingredientes de uma crise que já se arrasta há muito tempo e que em pouco mais de um ano provocou o assassinato de 62 internos. E como se não bastasse, a barbárie, até então consumada entre as quatro paredes do presídio, agora ganhou as ruas de São Luis. Nos últimos dias, vários ônibus foram incendiados e uma menina de oito anos morreu queimada.
Situações como essas não são uma novidade para os brasileiros. Cenários parecidos já foram vistos em outros estados. O Espírito Santo viveu algo semelhante alguns anos atrás. As chances de novas réplicas não são tão remotas, haja vista o crescimento dos índices de violência, a situação caótica do sistema penitenciário brasileiro, o aumento vertiginoso da população carcerária, o fortalecimento do crime organizado, a omissão das instituições ou, em alguns casos, a conivência de alguns seus representantes com as organizações criminosas que mandam e desmandam nos presídios e desde os presídios.
Rasgar as vestes e gritar ao escândalo diante dos crimes nas cadeias de São Luis é, a dizer pouco, uma hipocrisia. O que está acontecendo no Maranhão era previsível. Inclusive, situações parecidas podem se repetir em outros locais. Organizações de Direitos Humanos e agentes de Pastoral há tempo vem alertando sobre esses riscos, sobretudo ao denunciarem a estratégia do crime organizado que, apesar da propaganda oficial que declara seu enfraquecimento, está cada vez mais forte dentro e fora dos presídios. Boa parte do sistema carcerário está sob o controle do crime organizado. Os presídios, como também as periferias, estão se tornando suas bases estratégicas para desestabilizar o estado de direito e aterrorizar a sociedade com o objetivo de continuar suas atividades criminosas.
O crime organizado está criando um estado paralelo dentro do Estado. Trata-se de um estado com cara de ditadura, que impõe a lei do mais forte através do alto poder de fogo e da habilidade em seduzir mão de obra barata entre fileiras de adolescentes e jovens condenados à invisibilidade e sem acesso aos direitos fundamentais.
O caos de São Luis, mesmo com toda a sua gravidade, é só uma “pedrinha”, um fragmento de pedras maiores que se desprendem de um sistema estruturalmente violento e esmagador da vida e da dignidade humana.
O crime organizado está se impondo a caro preço, sobreduto em percas de vidas humanas. Segundo dados do Anuário de Segurança Pública, em 2012, no Brasil, houve 50.108 crimes violentos letais intencionais. Quatro mil a mais respeito ao ano de 2011. É como se o Itaquerão, o novo estádio de São Paulo, explodisse no dia da abertura da Copa do Mundo e 90% de seu público acabasse falecendo. É bom alertar que se trata de dados oficias que, quase sempre sofrem um processo de maquiagem. É provável que a realidade seja ainda mais sangrenta. A cada 100 mil brasileiros, 25,8 morrem assassinados. Na Alemanha a taxa é de 0,8. Na maioria dos casos as vítimas são pobres, negros e moradores da periferia. Mas na euforia da Copa do Mundo, tudo isso parece pouco importar. Para impedir que, durante a Copa das Confederações, as pedras dos manifestantes reduzissem em estilhaços as vitrines das agências do sistema neoliberal foi montada uma verdadeira operação de guerra. Foram adotadas medidas repressivas. Até a Lei de Segurança Nacional foi ressuscitada. Mas pouco é feito para enfrentar o crime organizado e remover as “pedras” que esmagam a vida dos pobres. A maioria das vítimas do crime organizado não interessa a ninguém. Para boa parte da população mal informada “é até bom que se matem entre eles”.
Para o próximo evento futebolístico estão sendo aprontadas medidas de segurança excepcionais. Milhares de policias estão sendo treinados há anos para que nada aconteça com os torcedores. A Força Nacional vai agir para reprimir as eventuais manifestações populares. A Copa não pode se tornar vitrine das consequências nefastas de um sistema que faz tudo por dinheiro. O grito das torcidas deve sufocar o clamor das ruas. Tudo tem que dar certo. Afinal das contas tem gente que investiu muito dinheiro. Furar corpo de pobre ainda dá, sobretudo quando é bandido. Alguma indignação pode gerar se for pai de família. Mas furar a bola nem pensar. “Contei 180 furos no meu filho”, disse o pai de preso que foi decapitado em Pedrinhas. Mas quem vai ligar para cadáveres de pobres, pretos e ainda mais presidiários?
A resposta a essa pergunta é um desafio para todos, sobretudo para quem leva a sério a proposta de Jesus Cristo. Para o cristão, a morte violenta, independentemente da cor da pele, da ficha criminal, das condições econômicas e do sexo das vítimas é uma pedra no sapato no processo de humanização e no caminho de identificação com o Mestre. Comprometer-se para removê-la é uma tarefa inadiável. Mas para que isso aconteça não dá para fazer o jogo do inimigo. O crime organizado estimula reações emotivas, atiça a guerra entre os pobres, arregimenta entre os jovens de periferia bodes expiatórios para responsabilizá-los da onda de violência, desviar as atenções e se safar de suas responsabilidades, promove a criminalização dos defensores de direitos humanos e semeia o medo para perseguir seus objetivos. Desmascarar esse projeto de morte é passo indispensável para promover a vida e a cultura da paz.
Não podemos esquecer que a Páscoa é o evento das pedras removidas. É a festa do terremoto. É a incursão do Espírito da Vida que implode a rocha, seja aquela que esmaga a vida dos outros seja aquela que obstrui a entrada da nossa própria vida impedindo a irrupção da luz da verdade e o sopro do oxigênio da compaixão e da solidariedade.
Padre Saverio Paolillo (Padre Xavier)
Missionário Comboniano
Pastoral do Menor e Carcerária