Padre Valdir: Violência policial preserva poder das classes dominantes

 Em Combate e Prevenção à Tortura

Ao analisar a atuação policial no Brasil, o Padre Valdir João Silveira, coordenador nacional da Pastoral Carcerária, ressalta que não se pode esquecer que o sistema penal, incluindo as polícias, não surgiu para combater violências, mas para conter “grupos sociais considerados rejeitados pela elite e marginalizados pelo sistema político-econômico”. Conforme o padre, “a violência policial é um modo que as classes dominantes encontraram de manter seu poder”.
Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, o Padre afirma que os policiais militares são formados em espaços muito distantes da sociedade civil. “É um ambiente com uma rigidez hierárquica tão forte que, quando o policial vai para a rua, sente que essa hierarquia se estende a todos os cidadãos”. O Sacerdote lamenta que a violência policial e o desrespeito aos direitos humanos recebam endosso de grande parte da população. “Para muitos, a simples suspeita de que alguém possa ter cometido um crime justifica que ele seja tratado com violência”, observa. Padre Valdir lembra que a adoção da força por parte dos policiais virou regra, “até mesmo em reintegrações de posse e manifestações sociais pacíficas”.
Lindando com a temática do encarceramento há mais de 25 anos, o Sacerdote afirma que é inevitável, “no campo político e jurídico, articular as propostas de desmilitarização e de controle popular do sistema de Justiça com a urgente necessidade de redução da população carcerária e com a extinção da lógica de guerra que perpassa as políticas de segurança”.
Padre Valdir é formado em Filosofia e Teologia, é mestre em Teologia Moral pelo Instituto Alfonsianum de Ética Teológica e em Melhoria na Gestão Penitenciária para a Incorporação dos Direitos Humanos pelo Kings College London – International Centre for Prison Studies.
Confira a entrevista.
IHU On-line – A polícia atua intensamente em crimes menos violentos cometidos por pessoas mais empobrecidas, principalmente jovens negros e da periferia, que acabam presos em flagrante. Há seletividade na ação da polícia? Ela é racista?
Valdir João Silveira – O círculo militar se forma, de certa forma, isolado do restante da sociedade civil, em um ambiente que privilegia a disciplina e a obediência em vez do debate. Por isso, o ambiente militar acaba sendo um terreno muito fértil para o preconceito e o racismo, ainda mais dentro de uma sociedade ainda tão marcada pelos traços da escravidão. Além disso, trabalhando com a ‘ideologia do inimigo’, a polícia militar tende a criar rótulos e estereótipos com os quais ela lida por soluções padrão. Esses rótulos, comumente, levam à criminalização da população negra e pobre, que costuma ser tratada pela polícia sempre como um inimigo em potencial. Não nos esqueçamos que todo o sistema penal, portanto também as polícias, não surge para o combate às violências, mas para a contenção de grupos sociais considerados rejeitados pela elite e marginalizados pelo sistema político-econômico.
IHU On-line – Por que há tanto confronto entre movimentos sociais e a Polícia Militar?
Porque o militar é formado em um ambiente muito distante da sociedade civil, com valores completamente diferentes dos nossos. É um ambiente com uma rigidez hierárquica tão forte que, quando o policial vai para a rua, sente que essa hierarquia se estende a todos os cidadãos. É como se o policial enxergasse no cidadão comum um subalterno, que deve obedecer a suas ordens, quando, na verdade, seu trabalho é justamente o de garantir que a sociedade civil seja um ambiente livre e democrático guiado pelo debate. Por isso, quando um movimento social vai às ruas fazer reivindicações, o conflito entre manifestantes e policiais é quase inevitável. Também é preciso lembrar que as autoridades que exercem o comando dos policiais costumam ter interesses completamente contrários aos de movimentos sociais. Este último aspecto é essencial para a análise: a instituição Polícia Militar é o instrumento bélico para a manutenção da ordem. A pergunta é: qual ordem? Ordem a favor de qual sistema econômico e a serviço de quais grupos sociais? Ora, na medida em que os movimentos sociais questionam justamente a ordem injusta e desigual, é acionada a repressão como mecanismo de controle social e manutenção da ordem.
IHU On-line – Por que problemas sociais são tratados como problemas de polícia?
São tratados como problemas de polícia porque quem está no poder não tem a menor vontade de resolvê-los, pelo contrário, lucra com eles. E a força policial é uma forma de as classes que estão no poder manterem as classes mais pobres constantemente dominadas pelo medo e pela intimidação. A violência policial é um modo que as classes dominantes encontraram de manter seu poder.
IHU On-line – O senhor atua na Pastoral Carcerária, em contato direto com a realidade do sistema prisional, onde muitas vezes o controle é feito por policiais militares. Na sua análise, profissionais civis seriam mais adequados para a administração do cárcere?
Antes de tudo: prisão é sempre prisão, e é inerente a esta instituição a violação da dignidade humana, os maus-tratos e as torturas, sendo mecanismo de contenção da população pobre, destacadamente a juventude preta e periférica. Portanto, seja a prisão administrada por militares, por civis ou por empresas (está em curso um perverso processo de privatização das cadeias e de mercantilização das violências), as denúncias de violação de direitos de todos os tipos abundam cotidianamente; não faltam exemplos de norte a sul do país. Uma análise importantíssima é que a lógica e a estrutura militarizadas perpassam o sistema prisional, mesmo quando a gestão é civil: hierarquia, punitivismo, cidadãos classificados como inimigos, repressão. Para ilustrar, tomando apenas um exemplo, os estados criaram, com o argumento de substituir a intervenção da tropa de choque da Polícia Militar em motins e rebeliões, grupos de intervenção e repressão no âmbito das unidades prisionais formados por civis. Tais grupos são tão ou mais violentos que as ações da tropa de choque nas cadeias e, mais grave, são utilizados corriqueiramente para revistas das celas, sempre fazendo uso da truculência. Enfim, a problemática não é uma questão administrativa ou de gestão, mas é a própria essência do punitivismo materializado nas prisões.
IHU On-line – A partir da sua experiência no acompanhamento da população carcerária, que consideração o senhor pode tecer sobre o papel e a atuação da Polícia Militar e da Polícia Civil?
É preciso reconhecer que a militarização extrapolou a Polícia Militar e atingiu outras instituições, como a Polícia Civil, o Judiciário e o Ministério Público, transbordando para outras áreas como a escola. Todos esses órgãos agem sob uma lógica de que existe um inimigo a ser combatido e eliminado. Isso afeta em muito o trabalho das polícias, não é à toa que grande parte dos presos reclamam que sofreram torturas e agressões no momento da prisão ou dentro das delegacias. Existem, ainda, aqueles que sequer são presos, porque são executados por policiais, que geralmente usam a farsa dos “autos de resistência” para matar impunemente. Só em 2014 foram mais de 3 mil vítimas da letalidade policial, isso em números oficiais. E a população carcerária não para de aumentar, o que só demonstra que a violência policial e o superencarceramento sequer servem para coibir o aumento das taxas criminais.
IHU On-line – O senso comum critica o gasto com o sistema prisional e prega que bandido bom é bandido morto. Esse discurso de intolerância e ódio ajuda a sustentar a violência policial?
Sim. Infelizmente, a violência policial e o desrespeito aos direitos humanos têm o apoio de grande parte da população. Para muitos, a simples suspeita de que alguém possa ter cometido um crime justifica que ele seja tratado com violência. O fato é que a sensação de insegurança permanece altíssima no país, mesmo que nos últimos 25 anos a população carcerária tenha aumentado mais de 580%, número reconhecido e assumido pelo Estado brasileiro. Então, podemos perguntar: prender reduz a violência e a sensação de insegurança? Por que não investir os bilhões da área da segurança em políticas sociais?
IHU On-line – Por que, no Brasil, há tanto preconceito às temáticas relacionadas a direitos humanos?
Nesse ponto, a mídia tem grande culpa, porque costuma propagar, através de programas policialescos, a ideia de que direitos humanos são sinônimo de impunidade ou apologia ao crime. Além disso, há uma indústria do medo, empresas poderosas que lucram com sistemas de segurança privada, produção de armas, condomínios e coisas do tipo. Para elas, é interessante que o discurso da resposta violenta seja mais ouvido que o de respeito aos direitos humanos, já que a elas não interessa que o crime seja combatido em suas causas sociais. Elas possuem um forte poder de lobby, não à toa o Legislativo brasileiro é formado por grupos de políticos financiados por essas empresas que se autodenominam, com orgulho, de “bancada da bala”.
IHU On-line – O uso da força pela polícia deve obedecer a critérios de necessidade e de proporcionalidade. Na prática, o que ocorre?
Na prática, o uso da força virou regra, até mesmo em reintegrações de posse e manifestações sociais pacíficas. Tudo que a polícia enxerga como uma subversão, seja um crime ou uma manifestação, é combatido com a força.
IHU On-line – Autoritarismo e independência são traços definidores das polícias Militar e Civil no Brasil?
Talvez sejam traços que definem todos os órgãos ligados à justiça no país. Não podemos esquecer que a Polícia Militar, principalmente, foi criada pela ditadura militar. Seu berço é antidemocrático, e, mesmo com a redemocratização do país, sua estrutura permaneceu a mesma. Além disso, há pouco poder de controle popular sobre as instituições públicas no país, não só nas polícias. Mesmo onde funcionam ouvidorias externas, elas geralmente têm somente caráter consultivo, mas não possuem poder de decisão ou de voto dentro das instituições.
IHU On-line – A desmilitarização da polícia é apontada como algo positivo para combater as arbitrariedades e os excessos cometidos pelos agentes de segurança do Estado, mas as perspectivas de que isso ocorra são mínimas, pelo menos atualmente. Sendo assim, o que pode ser feito para reverter o histórico de violência das corporações, mesmo que mantida a natureza militar?
Penso que o único meio de reverter esse histórico de violência é a desmilitarização. Nesse sentido, a PEC 51/2013, que tramita no Senado, tem algumas das propostas que mais se aproximam de uma solução para esse problema, através da desmilitarização, trazendo benefícios para a população e para os próprios policiais que, não se pode esquecer, também sofrem com os abusos de uma estrutura militar arcaica e violenta. Mas, à parte desse processo, que ainda está longe de acontecer, é preciso aumentar o poder de fiscalização e controle do povo sobre as instituições de Justiça, não só a polícia. É necessário que se criem mecanismos que transformem essas instituições, para que elas passem a agir para o povo, e não contra o povo. É inevitável, no campo político e jurídico, articular as propostas de desmilitarização e de controle popular do sistema de Justiça com a urgente necessidade de redução da população carcerária e com a extinção da lógica de guerra que perpassa as políticas de segurança. Dentre inúmeras questões, está a necessária descriminalização do uso e do comércio das drogas hoje classificadas como ilícitas e sua posterior regulamentação. Em comunhão e articulação com inúmeras organizações e movimentos sociais, a Pastoral Carcerária apoia e pauta a Agenda Nacional pelo Desencarceramento (a íntegra da Agenda está disponível em www.carceraria.org.br), que detalha pormenorizadamente propostas políticas e alterações legislativas para a diminuição da população presa, para a contração do sistema penal e para a desmilitarização das políticas, da política e da vida.
Entrevista concedida a Vitor Necchi/ IHU Unisinos
 

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