Padre Valdir: Solução é combater as causas do encarceramento em massa

 Em Combate e Prevenção à Tortura

Reproduzimos a seguir a entrevista do Padre Valdir João Silivera, coordenador nacional da Pastoral Carcerária, ao O SAO PAULO, semanário da Arquidiocese de São Paulo, publicada na edição de 18 de janeiro.
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Com a experiência de ter visitado prisões em todo o Brasil, o Padre Valdir João Silveira, coordenador nacional da Pastoral Carcerária, tem uma convicção: “Você não ressocializa ninguém isolando a pessoa numa cela, numa gaiola de ferro”. Nesta entrevista ao O SÃO PAULO, ele afirma que a Pastoral tem insistido na disseminação da justiça restaurativa e em uma agenda nacional pelo desencarceramento, especialmente diante da expansão do número de presos no país e de massacres como ocorridos no início deste ano em Roraima, Amazonas e Rio Grande do Norte.
 
1801Passados 25 anos do massacre do Carandiru, em 1992, 2017 começou com a morte de mais de 60 presos no Amazonas, 33 em Roraima e 26 no Rio Grande do Norte. O senhor acredita que há solução para o sistema prisional brasileiro?
Padre Valdir João Silveira – Analisando os dados da Justiça Penal em diferentes partes do mundo, a conclusão é que o sistema prisional, desde sua origem, não deu certo, mas nós temos visto que vários países, como o Brasil, seguem investido nisso. Temos hoje uma justiça penal-criminal que é punitiva, de castigo, enchendo cada vez mais os presídios, e novos são feitos e mais aumenta a violência. Por que isso acontece? Justamente porque o sistema prisional foi criado para ressocializar e integrar o preso, mas esse objetivo é contraditório, pois você não ressocializa ninguém isolando a pessoa numa cela, numa gaiola de ferro. Se a pessoa teve falhas sociais, teria que ser educada dentro da sociedade, e não isolada. Quando se diz que alguém se adaptou a algum modelo de presídio isso é um risco, pois a pessoa está adaptada ao presídio e não à sociedade.
 
As mortes no Complexo Penitenciário Anísio Jobim, em Manaus (AM) colocaram em questão a propagada eficácia dos presídios privatizados. Quais os principais problemas desse modelo de gestão prisional?
Dados do Ministério da Justiça mostram que Minas Gerais, que começou repassando a gestão dos presídios para ONGs, depois adotou cogestões e Parcerias Público-Privadas (PPP), é o estado onde a população carcerária mais cresceu entre 2005 e 2012, 620%, enquanto a média nacional foi de 74%. Vale lembrar, ainda, que esse modelo de cogestão e firmas privatizadas é norte-americano, e que o presidente Barack Obama tentou reverter, porque o encarceramento por lá aumentou. O que aconteceu agora em Manaus foi um alerta muito grande para o Brasil. Além disso, nas eleições de 2014, a empresa Umanizzare [que administra o Complexo Penitenciário Anísio Jobim e outras prisões no Norte do país] investiu em candidatos a deputado federal, e os eleitos entraram imediatamente com o pedido de redução da maioridade penal no Congresso, porque queriam aumentar a sua clientela de lucro, tendo mais pessoas presas.
 
Em seus objetivos, a Pastoral Carcerária defende “um mundo sem prisões”. Para muitos, isso é uma utopia assustadora. Por que seria mais benéfico para a sociedade, diante do atual sistema, desencarcerar os presos?
As nossas propostas concretas para um mundo sem prisões estão na Agenda Nacional pelo Desencarceramento (https://carceraria.org.br/agenda-nacional-pelo-desencarceramento), feita em conjunto com várias instituições da sociedade civil. São propostas baseadas em ações de países que vêm reduzindo em grande escala o encarceramento e registrado a diminuição da violência. É um contraponto ao que vemos no Brasil. O Estado de São Paulo, por exemplo, acabou com o Carandiru, mas, de 2002 até hoje, criou mais de 50 presídios, que já estão superlotados. Ao mesmo tempo, a violência disparou em todo o estado. Na Agenda Nacional pelo Desencarceramento, mostramos como a sociedade pode ser mais justa e fraterna sem o cárcere. Além disso, a Pastoral defende a justiça restaurativa, que foi criada pelas comunidades primitivas da Ásia, da África e do norte da Europa e da América do Norte, onde até hoje os conflitos são resolvidos sem a prisão. Nelson Mandela foi um grande defensor da justiça restaurativa, que já está sendo adotada em países como Noruega, Suécia, Holanda e Canadá. Enquanto na justiça punitiva a pessoa que comete o crime vai presa, na restaurativa quem cometeu o delito vai restaurar o que fez, totalmente ou em parte.
 
O senhor tem exemplos da aplicação da justiça restaurativa no Brasil?
Sim, vários casos práticos, especialmente envolvendo pequenos delitos. Aqui em São Paulo, um menor roubou uma família para comprar droga e cumpriu a pena trabalhando para restaurar o dinheiro para essas pessoas, e no fim foi contratado como funcionário pela família. E me lembro, ainda, do caso de um jovem no Rio Grande do Sul que atirou em um policial. No ciclo restaurativo, o policial conheceu o jovem e se propôs a ser seu tutor, pois viu que a família do rapaz era muito igual a dele, houve, assim, uma grande relação entre essas famílias.
 
Qual a parcela de responsabilidade do Judiciário nas atuais condições carcerárias?
Diante de qualquer problema nas prisões, a primeira reação do Estado é colocar a culpa nos presos. Porém, hoje se sabe que presidio é local de violência e que quase todos eles são comandados pelo crime organizado. Quem vai para a prisão corre risco de vida. Ora, se eu encaminho alguém para a morte, eu também sou criminoso, também sou responsável, sou autor do crime. No Brasil, a polícia prende e o Judiciário confirma, manda para o presídio, mesmo sabendo das condições de morte que existem e que quem entrar lá vai fortalecer o crime. Então, ou a pessoa morre na prisão ou se torna altamente violenta para a sociedade. Assim, o Judiciário brasileiro como um todo é diretamente responsável, cúmplice, de todas as mortes que acontecem nos presídios. E quando o preso morre, é dever do Estado indenizar a família. E de onde vem esse dinheiro? Sai do nosso dinheiro. A indenização não sairá do salário do juiz, do promotor público, mas de toda a sociedade. O Estado comete o erro e quem paga somos nós. Por isso, penso que o Judiciário deveria ser responsabilizado quando alguém morre no presidio.
 
A demora nos julgamentos também chama a atenção, pois 40% dos presos no Brasil são provisórios…
Sim, no Amazonas, por exemplo, 67% dos presos são provisórios. As pessoas são presas provisoriamente suspeitas de crimes, mas nada está comprovado. Mesmo assim, são jogadas a todas as mazelas das prisões, passam meses ou anos sem o julgamento. Existem estudos de que 36% dos presos provisórios ao serem julgados ou são inocentados ou já ficaram presos pelo tempo que a pena determina. Isso mostra a lentidão do Judiciário brasileiro. Da parte do Executivo, a culpa é por não criar mais cargos de defensores públicos para a assistência jurídica dos presos, isso é muito grave especialmente nos estados das fronteiras do Brasil, como o Amazonas, onde até bem pouco tempo só havia cinco defensores públicos.
 
A Igreja tratou da realidade das prisões na Campanha de Fraternidade de 1997, há 20 anos, mas ainda há muito a se conhecer sobre as prisões?
Certamente. E quem defende presídio privatizado ou cogestão, sugiro que faça uma visita a esses locais, mas que vá e possa conversar livremente com os presos e não com aqueles escolhidos pela direção da unidade. A maioria dos órgãos de inspeção no Brasil, por exemplo, só conversa com presos selecionados e também os inspetores nunca entram sozinho, vão com alguém da direção ou com segurança armada, assim, nunca conferem a realidade. A Pastoral Carcerária faz justamente o contrário: vai para o meio dos presos para escutá-los e para celebrar a fé com eles. Acredito que a Igreja deva se voltar mais para a defesa dessas pessoas, porque tem muito pobre preso. Na população carcerária, mais de 70% é de semianalfabetos, e a maioria é negra. Então, se as pessoas na Igreja querem fazer alguma coisa, que olhem e ajudem a combater as causas do encarceramento em massa no Brasil.
 
Entrevista concedida a Daniel Gomes/ O SÃO PAULO

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