Um pedaço de carne expõe a profunda carência de Justiça no Brasil

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Manifesto pela instituição das audiências de custódia
Você tem fome de quê?
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Gama-DF, 13 de maio de 2015:
Policiais civis brasilienses comovem-se diante da história do desempregado Mário Ferreira Lima que, desesperado para garantir a alimentação do próprio filho, furtou um pedaço de carne e acabou preso em flagrante delito na cidade satélite do Gama, no Distrito Federal. A notícia do Correio Braziliense, disponível em http://migre.me/pSzhL, esclarecia que “Mário não tem mulher, emprego nem condições de comprar comida” e que “ele sustenta o menino com o benefício do Bolsa Família, mas o dinheiro não foi depositado este mês”.
Os policiais fizeram então uma vaquinha para pagar a fiança, arbitrada em R$ 270,00, mas não ficaram apenas neste gesto que restituía a liberdade de Mário, por si já revelador de uma alteridade incomum nas carceragens policiais. A generosidade dos investigadores foi além quando resolveram ir até a casa dele, no Jardim Ingá, em Luziânia, cidade goiana situada no entorno de Brasília.
Segundo a notícia, o agente Ricardo Machado de Almeida, da 20ª Delegacia de Polícia do Gama, contou “que, ao chegarem ao imóvel, se depararam com o filho do preso. E o menino estava bem cuidado, alimentado e bem-vestido, diferentemente do pai, um homem magro, com aparência de sofrimento e sem conseguir emprego. Nos colocamos no lugar dele. Poderia ser com um filho nosso’. Depois de visitarem a casa de Mário, os agentes da 20ª DP descobriram que a situação era ainda pior. Não havia gás, comida ou qualquer mantimento para os dois na residência.”
Daí veio outro gesto de bondade, conforme esclarece a matéria do jornal: “Os policiais decidiram fazer ainda mais por Mário e o filho. Foram a um mercado e compraram diversos itens. Segundo Ricardo, em momento algum, o homem se aproveitou da boa vontade dos policiais. ‘Falamos para pegar uma pasta de dente e ele pegou a menor, a mais barata. Da comida, falava que estava muito agradecido e qualquer coisa que pegássemos estava bom’, lembra o agente. A compra foi entregue ao desempregado e os policiais voltaram à 20ª DP”.
Goiânia, 14 de maio de 2015:
Após mais uma decisão judicial de interdição da Casa de Prisão Provisória – cadeia pública da região metropolitana de Goiânia – ganha força a discussão sobre a implementação das audiências de custódia em Goiás. Esse procedimento é previsto tanto no Pacto Internacional sobre Direitos Civis quanto na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica). Em ambos os Estatutos, promulgados no Brasil em 1992, define-se que toda pessoa detida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz.
Mesmo existindo um projeto em andamento para a regulamentação do tema em sede de lei, a proposta tramita a passos lentos no Congresso Nacional. Todavia, pautados pelas normas da Convenção e do Pacto, assim como orientados pelo Conselho Nacional de Justiça, tribunais de justiça de alguns estados instituíram a audiência de custódia, entendendo pela viabilidade da imediata aplicabilidade da regra do Direito Internacional e pela desnecessidade de nova disposição legal nesse sentido no ordenamento jurídico interno.
Voltando à Casa de Prisão Provisória, unidade interditada por ordem da Vara da Execução Penal de Goiânia, embora disponha de espaço para 700 prisioneiros, tem limite de superlotação fixado em 1.460, mas encontra-se hoje com 2.280. Ou seja, está com três vezes a sua real capacidade máxima de lotação. Mais do que justificada estava, portanto, a ordem para que a unidade não receba novos prisioneiros.
Na matéria veiculada pela televisão (disponível em http://migre.me/pSAZ0) sobre a interdição do presídio, o coronel Edson Costa, Superintendente Executivo de Administração Penitenciária, propõe a implementação da audiência de custódia como uma primeira possibilidade de enfrentamento do problema do excesso de presos. Em resposta, o juiz Wilson da Silva Dias, Diretor do Foro de Goiânia, afirma seu posicionamento contrário à medida, aliás, posicionamento já firmado anteriormente pelos juízes goianos em reunião promovida pela Associação dos Magistrados de Goiás (ASMEGO).
Embora tenha tido o mérito de trazer o problema a público, a principal preocupação demonstrada pela reportagem era quanto ao destino dos futuros presidiários. Não obstante compreensível a abordagem jornalística ainda sob as balizas da política – e da cultura – do encarceramento em massa, o lado humano da questão e as graves violações comuns em unidades prisionais superlotadas não tiveram espaço na matéria. Sequer se percebe alguma indagação ou preocupação, mínima que fosse, sobre como estariam as condições daqueles 2.280 homens e mulheres hoje recolhidos no presídio interditado.
Entretanto, o que se destaca como mais interessante para este texto é o fato de que, de um lado, ao mencionar as audiências de custódia, o experiente coronel da Polícia Militar que conduz a gestão prisional em Goiás propõe a adoção de medidas cautelares distintas da prisão, ou seja, a liberdade; e de outro, a fala que representa a opinião majoritária dos juízes, para os quais as audiências de custódia não ajudariam a solucionar o problema da superlotação carcerária.
Pois bem, o que poderia haver de comum entre esses fatos de 13 e 14 de maio? Qual seria a relação entre a generosidade dos policiais ao lidar com o homem preso por furtar um pedaço de carne no Distrito Federal e a discussão sobre as audiências de custódia na capital goiana?
De início, um dado que poderia ser percebido como paradoxal em face daquela máxima de que “a polícia prende e a justiça solta”, utilizada como clichê pela imprensa marrom e verbalizada quase que diariamente pelos apresentadores de programas de televisão especializados na espetacularização da violência.
Na cidade do Gama, foram exatamente os policiais civis que providenciaram meios para a liberdade do seu prisioneiro, a ele ofertando também mantimentos para a sobrevivência própria e de seu filho; ao passo que em Goiânia foi também um experimentado oficial de polícia, que já exerceu inclusive o cargo de Comandante Geral da Polícia Militar do Estado de Goiás, que veio a público dizer que a Justiça precisa avaliar com maior rapidez a possibilidade de liberação de presos provisórios e a utilização de meios alternativos à prisão. Embora com outras palavras, o agora superintendente da Administração Penitenciária de Goiás disse que a Justiça precisa soltar!
De sua parte, os juízes goianos resistem, ressalvadas as exceções, à possibilidade de experimentar um dispositivo capaz, sim, de produzir liberdade e justiça, com mais qualidade e rapidez. Bastaria um rápido olhar sobre a recente experiência das audiências de custódia no Maranhão e em São Paulo. Neste último, a informação disponibilizada pelo Tribunal de Justiça (veja em http://migre.me/pT16Z) esclarecia que em menos de dois meses, até 16 de abril, havia sido concedida a liberdade para 439 dos 1.010 presos ouvidos em audiência de custódia na capital paulista.
Mas faça agora uma pausa para o exercício da imaginação: o que poderá contribuir para a melhor compreensão do que se propõe com este breve artigo. Imagine uma situação hipotética em que aquele senhor desempregado detido em Brasília não tivesse tido tanta sorte, tampouco pudesse contar com a generosidade dos responsáveis pela sua prisão. E mais, imagine também que a prisão daquele pai flagrado furtando um pedaço de carne para alimentar o filho tivesse ocorrido não em Brasília, mas em algum supermercado de Goiânia.
Sem poder esperar a bondade (embora não seja improvável que em alguma delegacia da capital goiana também possa acontecer similar ato de generosidade) nem a boa vontade dos agentes de polícia e inexistindo a audiência de custódia, aquele homem provavelmente ainda estivesse preso. Preso na Casa de Prisão Provisória, junto com os outros 2.280 prisioneiros que lá estão. E provavelmente, aqui ainda viajando na hipótese imaginária, ali permaneceria por semanas ou até meses. Pense no seu filho de 12 anos de idade, que permaneceria sozinho no mundo durante esse período. O que teria acontecido com o menino?
Para complicar um pouco mais a história, lembre-se agora que Goiás não tem uma Defensoria Pública estruturada para o atendimento à população. Sem demérito quanto ao trabalho hercúleo dos 17 advogados investidos na função em Goiás, não se pode sequer afirmar que há realmente uma Defensoria Pública por estas terras.
Imagine, por fim, que a pequenez e insignificância do furto de um pedaço de carne não fossem suficientes para a decisão da liberdade provisória. É que existem três registros, dos anos de 2004 e 2007, da prática de outros crimes da mesma natureza (furto de alimentos), na ficha criminal do suspeito, conforme se descobriu posteriormente por ocasião da verificação dos antecedentes criminais de Mário Ferreira Lima. Orientada apenas pela frieza dos papéis, a decisão do juiz criminal seria bastante previsível e a liberdade, mais difícil, talvez não passasse de uma quimera.
Acontece que, de volta ao mundo das coisas reais (ou seriam surreais?), o drama ocorrido na cidade do Gama, em Brasília, não é nem de longe uma situação isolada. Está presente e com uma frequência perturbadora. Já os fatores propostos para o exercício de imaginação acima proposto não são nada imaginários. São bem reais! Em maior ou menor dimensão, com tragédias humanas que certamente seriam capazes de comover o mais duro dos corações, há inúmeros casos parecidos com o do desempregado Mário. Talvez dezenas ou até centenas somente na Casa de Prisão Provisória de Goiânia.
Porém, levando-se em consideração a ampla perspectiva de possibilidades para a aplicação das medidas cautelares alternativas à prisão e aproveitando-se como referência o alto índice de liberação de presos a partir da experiência das audiências de custódia na capital paulista, poderíamos ver a Casa de Prisão Provisória ser substancialmente esvaziada sem qualquer prejuízo à legalidade ou à segurança pública.
Os acontecimentos desta semana que passou foram, no mínimo, estranhos. Policiais que soltam ou que querem soltar prisioneiros e juízes que resistem à liberdade.
Mas a discussão está aberta. É necessária e urgente, até para que a audiência de custódia saia do debate e entre definitivamente nas rotinas procedimentais da Justiça criminal. A expansão do sistema punitivo, claramente representada na altíssima pressão do encarceramento em massa e nas prisões superlotadas, bate no seu extremo insuportável e exige novos olhares e novas formas de intervenção por parte de todas as instituições envolvidas, com maior carga de responsabilidade para o Poder Judiciário, a Administração Penitenciária e o Ministério Público, este também com clara resistência àquela inovação processual.
A audiência de custódia, uma vez instituída, pode mudar paradigmas. Tem grande potencial para trazer mais efeitos positivos do que negativos. Não é, e convém ressaltar, solução mágica para os profundos e complexos problemas por que passam os presídios, a começar da superlotação, mas poderá, sim, ser uma ferramenta fundamental nesse necessário processo de discussão e de mudança da realidade carcerária, palco das maiores violações de direitos humanos em solo brasileiro, fonte de violência do lado de fora dos muros, expressão do fracasso da Justiça criminal e motivo de vergonha para a Nação inteira.
Também merece registro o fato de que a audiência de custódia projeta-se exclusivamente para a imensa população de presos provisórios, ou seja, homens e mulheres que, embora presos e apontados como suspeitos da prática de crimes, ainda não tiveram a culpa reconhecida. Presos sem sentença. Presos que, em grande parte das vezes, ganham a liberdade só ao final do processo em primeira instância, meses e meses após a prisão. Presos que ganham a liberdade mesmo quando condenados. É o que acontece nos casos da aplicação, na sentença, das penas restritivas de direitos ou dos regimes prisionais menos severos, como o aberto e o semiaberto. A audiência de custódia é instrumento de Justiça!
Por mais que o senso comum da população, alimentado por uma mídia irresponsável e raivosa, compreenda o processo penal apenas como um expediente condenatório, e que eventual liberdade ou absolvição significariam falhas ou distorções no sistema punitivo, Justiça é algo distinto do exercício cego do castigo e da punição. Tal postura seria apenas a materialização da vingança. Justiça é algo muito diferente disso.
A audiência de custódia será uma ferramenta poderosa que, na falta daqueles generosos agentes de polícia da cidade satélite do Gama, significará a garantia de que outros pais e outras mães e outros filhos e outras filhas, milhares de homens e mulheres que passam pela dura experiência de se verem detidos por agentes do Estado, tenham a rápida verificação da legalidade e da necessidade da prisão.
E o juiz, assumindo a sublime e fundamental missão de garantidor maior do direito à liberdade, esse atributo tão caro ao ser humano, terá nesse primeiro momento de contato com o preso, agora visto de perto e com o direito à fala perante a autoridade judicial, uma oportunidade valiosíssima. Seja para avaliar a legalidade ou a necessidade da prisão cautelar, eventual indício de tortura, as condições de encarceramento e tantas outras circunstâncias que jamais seriam informadas nos formulários e autos de prisão em flagrante delito.
A partir do rico contato humano e da escuta do preso, terá o juiz melhores condições para fazer valer e fazer prevalecer aquele princípio fundamental previsto na Constituição e que define a liberdade como regra e que reserva a prisão durante o processo exclusivamente para os casos mais graves, para os quais não seja indicada a liberdade provisória.
 
Por Haroldo Caetano da Silva,
Promotor de Justiça, Mestre em Ciências Penais (UFG) e Doutorando em Psicologia (UFF). Autor dos livros Ensaio sobre a pena de prisão (Juruá, 2009), Execução Penal (Magister, 2006), Embriaguez e a teoria da actio libera in causa (Juruá, 2004).

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