São Paulo, 21 de janeiro de 2016
A Pastoral carcerária nacional – CNBB e a Pastoral Carcerária do Estado de São Paulo – Regional Sul I da CNBB vêm, por meio da presente nota, prestar sua solidariedade à desembargadora Kenarik Boujikian Felippe, a qual foi representada na Corregedoria Geral de Justiça do E.Tribunal de Justiça de São Paulo pelo Desembargador Amaro José Thomé Filho.
A representação ocorreu após a Sra. Kenarik, na qualidade de relatora de alguns processos que tramitam em sede de apelação no referido E. Tribunal, decidir cautelarmente pela expedição de alvará de soltura para 10 réus que estavam presos preventivamente há mais tempo do que a pena estabelecida na sentença. O julgamento do processo administrativo disciplinar encontra-se suspenso, após o pedido de vista do Sr. Desembargador Antônio Carlos Malheiros.
A acusação que pesa contra a Sra. Kenarik seria a de supostamente usurpar a competência do juízo da execução e de violar o princípio da colegialidade com sua decisão cautelar. Entretanto, na realidade, tudo indica o contrário: a nobre Desembargadora apenas cumpriu seu papel constitucional de Magistrada, preservando os princípios do nosso ordenamento jurídico.
Não é preciso grandes discussões jurídicas para compreender a lisura das decisões da Desembargadora: ao atuar como relatora, ela simplesmente constatou que havia réus presos cautelarmente há mais tempo do que a pena determinada em sentença pelo Juiz de primeira instância.
Ora, não há como manter presa cautelarmente uma pessoa por mais tempo do que a pena recebida só porque a apelação ainda não havia sido julgada! A situação kafkiana desses réus só revela o absurdo do nosso sistema de justiça criminal, em que um recurso de apelação demora tanto para ser julgado que a pessoa corre o risco de cumprir integralmente a pena antes mesmo do resultado dessa apelação, que poderia reduzir a sua pena ou absolvê-lo da acusação – haja vista que, pelo princípio da proibição da reformatio in pejus, quando apenas o réu apela da sentença o E. Tribunal não pode agravar ainda mais a sua pena.
Mais absurda ainda é a sustentação de alguns de que o relator do recurso não pode agir de ofício expedindo a ordem cautelar para cessar tal ilegalidade, devendo esperar todo o julgamento do recurso para só depois expedir a referida ordem, e, consequentemente, a soltura do réu– o que pode demorar anos.
Mesmo primando pelo tecnicismo, a decisão da Sra. Kenarik é irretocável, pois como pode ser observado no preciso parecer do Professor da Faculdade de Direito da USP, Sr. Maurício Zanoide de Morais[1], a Desembargadora tinha, sim, competência para expedir a ordem. Ela não só pode, como deve agir de ofício, não havendo, portanto, usurpação da competência da Vara de Execução – haja vista o Regimento Interno do referido E. Tribunal conferir poderes ao relator para proferir decisões sobre medidas cautelares no âmbito penal, como a prisão preventiva – ou qualquer violação ao princípio do colegiado – uma vez que sua decisão não é definitiva, podendo ser revogada pelo colegiado, se entenderem que foi equivocada.
Mais do que isso, como bem ressaltado no eloquente parecer, a Sra. Kenarik salvaguardou o Estado, eis que o art. 5º da Constituição Federal aduz, no seu inciso LXXV, que “o Estado indenizará o condenado por erro judiciário, assim como o que ficar preso além do tempo fixado na sentença”, o que demonstra de forma clara a legalidade, o bom senso e a seriedade do ato da Desembargadora.
Tudo indica que as decisões da Sra. Kenarik, questionadas na Corregedoria, embora legais e justas, confrontam-se com a mentalidade punitivista e encarceradora de outros membros do E. Tribunal de Justiça de São Paulo – infelizmente, muito presente em todo o nosso sistema de justiça criminal.
Observa-se que alguns operadores do Direito, em total desacordo com os direitos e garantias fundamentais, promovem obstinadamente a pena de prisão como panaceia dos problemas sociais, dentre eles a violência urbana. Fazem da prisão regra, quando ela deveria ser exceção (ultima ratio), como prevê o nosso ordenamento jurídico. Ou seja, há pressa para prender, mas não para soltar quando é este odireito do réu.
Isso não só é tecnicamente errado e ilegal, como gera consequências terríveis para a população e, inclusive, à imagem do Brasil no âmbito internacional, haja vista que, enquanto há países que estão fechando prisões por ausência de presos, o Brasil apresenta a maior taxa de crescimento da população prisional no mundo. Em números absolutos, o Brasil ultrapassou o número de 715,6 mil presos[2], ocupando a terceira posição maior população carcerária do mundo.
Além disso, nosso sistema de justiça criminal é seletivo. Em regra, tais presos são jovens de baixa renda e escolaridade, encarcerados em unidades superlotadas sem as mínimas condições de higiene e de estrutura do espaço, cumprindo pena de forma degradante, em um cenário onde as violações de direito são regra e o cumprimento da Lei de Execução Penal e das garantias constitucionais, exceção.
A Desembargadora Kenarik é co-fundadora e ex-presidente da Associação de Juízes para a Democracia (AJD) e conhecida por seus posicionamentos em linha com os direitos humanos e o garantismo penal. Sua atuação sempre foi pautada pela seriedade, esforço de trabalho e respeito às garantias e direitos constitucionais, cumprindo um papel fundamental na efetivação dos direitos das pessoas mais vulneráveis e no combate ao Estado autoritário. Não é por menos que diversos juristas e diversas instituições estão se mobilizando em apoio à Desembargadora Kenarik[3].
Por isso, a Pastoral carcerária nacional – CNBB e a Pastoral Carcerária do Estado de São Paulo – Regional Sul I da CNBB manifestam seu irrestrito e total apoio à Desembargadora Kenarik, acreditando ser descabido e absurdo este processo administrativo disciplinar. Que a Desembargadora Kenarik continue cumprindo seu ofício com a mesma coerência e dedicação que lhe rende tamanho reconhecimento da sociedade civil e da comunidade jurídica.
Pe. Valdir João Silveira
Coordenador Nacional da Pastoral Carcerária – CNBB
Deyvid Tadeu Livrini Luiz
Coordenador da Pastoral Carcerária/SP – Regional Sul I da CNBB
[1] Fonte: Parecer – Maurício Zanoide de Morais
[2] Fonte: Consultório Jurídico
[3] Vide: Justificando