Pe. Gianfranco: exageros devocionais e a justiça que restaura

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Deus não precisa que as pessoas fiquem o tempo todo adorando-o nem tentando agradá-lo. Por exemplo, na Bíblia, Deus gosta de Davi, que não é um sujeito perfeito, e se comove pelas lágrimas da mulher estéril que quase chegou a ser feiticeira para conseguir ter filhos. Assim, Deus não seria a grande personagem que é se ele só gostasse das pessoas muito corretas.

Quando Jesus está na cruz, tem dois ladrões ao seu lado (o dito bom e o mau ladrão). O mau questiona-o: “Se você é Deus, por que não acaba com tudo isso aqui?”. O bom ladrão, por sua vez, rebate-o: “Cale-se! Nós estamos aqui porque merecemos, pois éramos ladrões. Já esse homem não merece estar aqui; não fez mal a ninguém”, e dirige-se a Jesus: “Eu só peço que você se lembre de mim quando entrar no Paraíso”. Jesus então responde-lhe: “Hoje mesmo você estará comigo no Paraíso”. Em suma, esse bom ladrão não disse aquilo a Jesus Cristo porque queria agradá-lo, e, sim, porque ele sabia que merecia estar na cruz.

Lembre-se, nem toda a pessoa que diz “SENHOR, SENHOR” entrará no reino dos céus. Importante estarmos alertas com nossas misérias internas e não usarmos a adoração como cortina de fumaça para ofuscar quem verdadeiramente somos. Talvez nossa conduta seja doente e precise de médico, não de uma devoção exagerada, escandalizando a própria religião que professa e usando-a como cortina de fumaça para não assumir próprias fragilidades, inconsistências, frustrações, decepções e fracassos.

Usar a religião para fugir das próprias responsabilidades é típico da hipocrisia farisaica que Jesus enfrenta e desmascara, e hoje podemos encontrá-la numa espiritualidade vazia de pessoas e movimentos que transformam Deus num mágico, que ao mesmo tempo atrai, fascina e castiga, e por isso eu preciso cumprir com as cotas de minhas obrigações, orações, sem um real e verdadeiro compromisso com o projeto do Reino de Deus.

A isso Papa Francisco chama de mundanismo religioso, ou como alguns afirmam, de Mcdonaldização da fé, transformando a religião em produto de supermercado, ao qual eu recorro dependendo do momento, das circunstâncias e das necessidades.

Um fenômeno que chama a atenção é também a instrumentalização da religiosidade popular, usada e abusada para justificar práticas que nada tem a ver com seu espírito de simplicidade e expressão popular de afeto e carinho para com Deus, nossa Senhora ou santos, que ao longo da história foram exemplo de enfrentamento de situações de escravidão, violência, questionando um sistema econômico e social, como é o caso de Francisco, Clara, ou vindo mais perto de nós poderíamos falar de Dulce dos pobres, Frei Galvão ou até o Padre Cicero.

Fundamental na fenomenologia religiosa de nosso tempo é a individualização da fé, perdendo seu sentido comunitário e refugiando-se numa religião intimista e personalista, e isso encontra suas expressões na necessidade de rezas prolixas, de cantos sentimentais, e no uso descontrolado das palavras, dos testemunhos que alimentam e satisfazem seu narcisismo e egocentrismo. A religião expressa concretamente e de uma forma sutil a realidade que caracteriza a sociedade e a humanidade do século XXI, onde o pensamento é fraco e a realidade, líquida.

Já Bento 16, na sua fala introdutória ao documento de Aparecida, chama a atenção quando afirma: «Não resistiria aos embates do tempo uma fé católica reduzida a uma bagagem, a um elenco de algumas normas e de proibições, a práticas de devoção fragmentadas, a adesões seletivas e parciais das verdades da fé, a uma participação ocasional em alguns sacramentos, à repetição de princípios doutrinais, a moralismos brandos ou crispados que não convertem a vida dos batizados. Nossa maior ameaça “é o medíocre pragmatismo da vida cotidiana da Igreja, no qual, aparentemente, tudo procede com normalidade, mas na verdade a fé vai se desgastando e degenerando em mesquinhez”. A todos nos toca recomeçar a partir de Cristo, reconhecendo que “não se começa a ser cristão por uma decisão ética ou uma grande ideia, mas pelo encontro com um acontecimento, com uma Pessoa, que dá um novo horizonte à vida e, com isso, uma orientação decisiva”».

«A Igreja é chamada a repensar profundamente e a relançar com fidelidade e audácia sua missão nas novas circunstâncias latino-americanas e mundiais. Trata-se de confirmar, renovar e revitalizar a novidade do Evangelho arraigada em nossa história, a partir de um encontro pessoal e comunitário com Jesus Cristo, que desperte discípulos e missionários».

Desde o começo de seu serviço como bispo de Roma, há dez anos, Francisco vem apontando caminhos que ao mesmo tempo valorizam e fortalecem a fé a partir da devoção religiosa e da fé popular e chamam a atenção para o perigo de uma experiência eclesial e religiosa autorreferencial, doentia, que se torna uma alfândega onde se cobram juros, tornando-se mundana e sendo ameaçada pelo gnosticismo e neopelagianismo, heresias que excluem a ação gratuita de Deus na história e experiência humana.

Arquidiocese de Brasília realiza procissão durante Festa da Padroeira – Nossa Senhora Aparecida, na Esplanada dos Ministérios (Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil)

«O Evangelho provoca a mudança e convida à conversão. Não dispensa uma falsa paz intimista, mas acende uma inquietude que nos coloca no caminho, nos impele a abrir-nos a Deus e aos irmãos. É como o fogo: enquanto nos aquece com o amor de Deus, quer queimar nossos egoísmos, iluminar os lados sombrios de nossa vida, – todos nós os temos! – consumir os falsos ídolos que nos escravizam.

Jesus é iluminado pelo fogo do amor de Deus e para fazê-lo arder no mundo, se entrega em primeira pessoa, amando até ao fim, ou seja, até a morte e morte de cruz (Fil.2,8). Ele nos convida a reacender a chama da fé, para que ela não se torne uma realidade secundária, ou um meio de bem-estar individual, que nos faça escapar dos desafios da vida e do compromisso na Igreja e na sociedade.

A fé, em suma, não é uma canção de ninar, que nos embala para dormir. A verdadeira fé é um fogo, um fogo aceso para nos manter acordados e ativos mesmo durante a noite!» Isso significa que a fé é um processo, não é estática, ela precisa assumir a experiência humana profunda que Jesus faz fazer a cada um, a cada uma de nós, pensemos a um Mateus, Zaqueu, Maria de Magdala, Marta, a pecadora, e o próprio Pedro.

Esse é o processo restaurativo e libertador que não é mágico; ao contrário é concreto, real, constante e por isso dolorido, mas uma vez abraçado, dá o respiro de uma nova vida que se move e vive em mim. Jesus, o grande restaurador, diz-nos que a nossa vida é questão do Reino e muda na medida que eu reconheço minha fragilidade, assumo suas consequências, e a partir do encontro pessoal com ele, ajudado e fortalecido pela comunidade (circularidade) escolho mudar de vida e de me tornar palavra e carne de Cristo, o paraíso aqui e agora.

Eis porque nossa ação de Justiça restaurativa é uma verdadeira evangelização que contempla em cada pessoa a vida de Deus, o grande santuário onde ele mora e é contemplado e adorado. Essa é a verdadeira devoção a Deus.

Padre Gianfranco Graziola é assessor teológico da Pastoral Carcerária Nacional

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