Padre Valdir Silveira denuncia encarceramento em massa e genocídio da população negra em seminário na Academia Brasileira de Letras

 Em Combate e Prevenção à Tortura

O Padre Valdir Silveira, coordenador nacional da Pastoral Carcerária, realizou uma fala na Academia Brasileira de Letras (ABL) no Seminário Brasil, brasis, cujo tema era “Crônica de uma juventude assassinada”. Ligando a literatura à realidade do sistema prisional, o coordenador da PCr criticou o encarceramento em massa e os assassinatos cotidianos de pessoas pobres e negras.
“A Pastoral Carcerária tem como horizonte “Um mundo sem cárcere”. O reino de Deus é um reino de igualdade, de fraternidade e onde a justiça tem o nome de misericórdia, segundo o nosso papa Francisco. Não agimos como Fiodor Dostoiévski descreve a religião junto aos condenados, no livro Os Irmãos Karamazov, no diálogo entre Ivan e Aliócha: aceitar a punição até a morte, como forma de submeter-se à vontade de Deus! Não! “Portanto, agimos de acordo com os documentos e orientações do magistério e da doutrina social da Igreja, e muito atentos ao papa Francisco, que desafiam a todos os cristãos/ãs a combater a mãe de todas as violências, a desigualdade social”.

Confira abaixo a fala completa do Padre Valdir Silveira na ABL:
Desencarceramento ou mais barbárie!
Pe. Valdir João Silveira
A Pastoral Carcerária busca ser presença da Igreja de Jesus Cristo junto às pessoas privadas de liberdade, anunciando o Reino de Deus e defendendo profeticamente a dignidade da pessoa.
Em sua missão religiosa, a pastoral não busca apenas levar a pessoa presa a um encontro pessoal com Jesus Cristo, o libertador de todas as prisões.
Não agimos como Fiodor Dostoiévski descreve a religião junto aos condenados, no livro Os Irmãos Karamazov, no diálogo entre Ivan e Aliócha: aceitar a punição até a morte, como forma de submeter-se à vontade de Deus! Não!
Nos questionamos e combatemos esta instituição seletiva e injusta chamada Justiça Penal!
Mais, agimos indignados e questionamos o sistema de punição como o João Miguel no romance de Raquel de Queiroz: Não há nada pior no mundo do que um homem viver preso. Diz que não há mal que não venha pra bem. Mas qual é o bem de se encarcerar um vivente?… Quem é, no mundo, que ganha com a cadeia?… E, agora, nós? De que serve para a gente a cadeia? Só pra se ficar pior… Não era muito melhor que me obrigassem a sustentar a viúva do finado e até a criar os filhos dele? Isso é que era o direito…”. (Pág. 102/103)
A Pastoral Carcerária tem como horizonte “Um mundo sem cárcere”. O reino de Deus é um reino de igualdade, de fraternidade e onde a justiça tem o nome de misericórdia, segundo o nosso papa Francisco.
Portanto, agimos de acordo com os documentos e orientações do magistério e da doutrina social da Igreja, e muito atentos ao papa Francisco, que desafiam a todos os cristãos/ãs a combater a mãe de todas as violências, a desigualdade social.
Hoje, no Brasil, mata-se!
Mata-se nas ruas, nas periferias e nos presídios quase sempre a mesma população, já que a maioria dos mortos é de corpos pretos e, geralmente, jovens e pobres.
De acordo com o Atlas da Violência de 2017, em 2015 houve 59.080 homicídios no Brasil, número superior às 48 mil a 50 mil mortes ocorridas entre 2005 e 2007.
Em 2015, 4.621 mulheres foram assassinadas no país, o que corresponde a uma taxa de 4,5 mortes para cada 100 mil mulheres.
Em 2015, foram registradas 3.320 mortes decorrentes de intervenções policiais. Entre 2005 e 2015, a diferença proporcional entre as taxas de homicídio de pessoas negras e não negras aumentou 34,7%. Verificou-se um aumento proporcional da diferença nas mortes violentas de pessoas negras em 16 estados, diferença ainda mais aprofundada no Estado de Sergipe (171,9%).
Mata-se nos presídios todos os dias, de morte violenta e de morte aos poucos. Ali se morre por falta de uma alimentação necessária, mas também pela água contaminada, pelo ar, pelo espaço insalubre, pela superlotação dos presídios, pela sobrevivência no espaço reduzido, por falta de medicação, de atendimento médico ou de tortura. Também se morre nos motins, incitados ou permitidos pelos agentes do Estado. Um sistema, enfim, produtor: produtor de mortes! Aqui podemos indagar como em Morte e Vida Severina de João Cabral de Melo: “e foi morrida essa morte, irmãos das almas, essa foi morte morrida ou foi matada? Até que não foi morrida, irmão das almas, esta foi morte matada. Pois presídios têm esta finalidade: pagar a PENA.
A palavra pena provem do latim poena e do grego poiné, e tem o significado de inflição de dor física ou moral que se impõe ao transgressor de uma lei.
Conforme as lições de Enrique Pessina (1919), a pena expressa “um sofrimento que recai, por obra da sociedade humana, sobre aquele que foi declarado autor de delito. Então, aniquila-se, tortura-se e mata-se!
Nos presídios, só de mortes violentas, foram ao menos 379 no ano 2016. Neste ano de 2017, só nos primeiros 15 dias do ano, 142 morreram em presídios no Brasil.  Por mortes “naturais” em locais onde o remédio é escasso e a presença de profissionais da saúde é mais escassa ainda, sabe-se que a possibilidade de morrer por tuberculose é dez vezes mais do que quem está fora do sistema prisional.
O sistema penal que atua sistematicamente à margem da lei, torna-se, ele próprio, um empreendimento criminoso. Não podemos entender essa situação apenas como um ataque à dignidade das pessoas encarceradas, mas também como um crime contra a própria humanidade. Essa violência institucional se reflete de inúmeras formas no ambiente carcerário, e muitas vezes se revela de maneira absolutamente brutal.
Nos presídios, mata-se de uma forma, ainda mais cruel, as chamadas populações invisíveis como as mulheres, os imigrantes, a população LGBT e os doentes mentais. A mulher grávida, lactante com filho, enfrenta muitos outros problemas além das violações sistêmicas da prisão. A grande maioria dos presídios feminino, é mista. Prisões mistas sem qualidade para reter presas com os seus filhos, onde a lei do ventre livre para estas crianças ainda não chegou. E quando a liberdade chega, para as crianças dos cárceres, repete-se sempre a cena que Fernando de Morais escreveu em seu livro “Olga”.
A violência da extração da criança dos braços de uma mãe prisioneira, às vezes com a anestesia das psicólogas, assistente sociais ou até mesmo de religiosos para aplacar a dor da separação continua a se repetir nos cárceres femininos de todo o Brasil, a despeito daquilo que, formalmente, é garantido na lei.
Os imigrantes, os desterrados economicamente, destituídos de qualquer contato com o mundo exterior, terão como acréscimo na punição, a incerteza de como estarão vivendo os seus familiares, principalmente os seus filhos menores!
A população LGBT ao entrar numa unidade prisional sabe que além de ser punida pelo estado, será seviciada. Os pares de cárceres somar-se-ão aos seus algozes.
A população de doentes mentais, que pela lei deveria ser composta de pacientes em tratamento e acompanhamento médico, estando encarcerada, torna-se presa da institucionalização, onde a luta antimanicomial ainda não chegou.
O Estado criou um sistema que mata mais que todos os crimes cometidos pelos seus inquilinos. E mata de forma estratégica, e multifacetada. Concordando com Michel Foucault, “por tirar a vida não entendo simplesmente o assassínio direto, mas também tudo o que pode ser assassínio indireto: o fato de expor à morte, de multiplicar para alguns o risco de morte ou, pura e simplesmente, a morte política, a expulsão, a rejeição, etc. Como na perversa máquina da Colônia Penal narrada por Franz Kafka, a prisão inscreve nos corpos, de forma indelével, o estigma nas mulheres e homens submetidos às suas sevícias, expostas e expostos à sociedade para seções cotidianas de suplícios morais, existências, sociais, econômicos e políticos.
A prisão não ressocializa, ela tem como função matar. E um dia seremos cobrados pela forma como tratamos e ignoramos nossos irmãos encarcerados. Como relata Nelson Mandela em sua biografia “Longa Caminhada Até a Liberdade”:
Costuma-se dizer que ninguém conhece verdadeiramente uma nação até que tenha estado dentro de suas prisões. Uma nação não deve ser julgada pelo modo como trata seus cidadãos mais elevados, mas sim pelo modo como trata seus cidadãos mais baixos.”
Em 1988, selou-se um pacto constitucional que elevava, entre suas garantias fundamentais, a vedação da pena de morte e das penas cruéis. Tal pacto é desmentido cotidianamente em cada prisão desse país, onde se multiplicam as violações premeditadas e institucionalizadas.
Temos 500 anos que se passaram desde a invasão portuguesa e toda a matança escravista promovida pelos colonizadores. Outros 100 anos se passaram entre a abolição formal da escravidão e a promulgação da Constituição e, desde então, são 29 anos de suposta democracia de direito que, todavia, não pôs freios ao processo histórico de tortura e execução sistemática dos corpos negros. O Massacre do Carandiru, que estará completando 25 anos em 2 de outubro de 2017, revela-se, tragicamente, não como um episódio, mas como o paradigma da chamada “redemocratização” e do nosso “Estado Democrático de Direito”.
Como afirma a pesquisadora Ana Flauzina, no Brasil “o genocídio está na base de um projeto de Estado assumido desde a abolição da escravatura, com a qual nunca se romperá efetivamente. A agenda genocida é recepcionada pelos sucessivos governos que assumiram a condução do país desde então, sem que se alterassem os termos desse pacto. Daí a grande dificuldade de ter acesso ao projeto: ele não é pontual, mas estrutural”.
Apesar da chegada da “República”, apesar da “democratização” do país e do advento da “Constituição cidadã”, o que revela o processo histórico brasileiro é a continuidade e o aprofundamento do genocídio que fundamentou o nascimento do país e que segue em curso. Seguimos embalados pelo cinismo do personagem de Lampedusa: algo sempre “muda” para que tudo, sobretudo o genocídio secular da população negra, continue como está.
Estas mortes tornam-se estatísticas. A Pastoral Carcerária diz não a esta indiferença. Ninguém chora os presos que morrem! Eles são seres descartáveis. Vivemos, segundo o papa Francisco, a cultura do bem-estar, que nos leva a pensar em nós mesmos, nos torna insensíveis aos gritos dos outros, nos faz viver em bolhas de sabão, que são belas, mas são uma ilusão de futilidade, do provisório, que leva à indiferença para com os outros, leva até mesmo à globalização da indiferença”. Como diz o papa, “Necessitamos lutar para não nos deixar absorver por essa espiral do terror e da impotência”.
A Pastoral Carcerária não compactua com esse eterno cinismo e não aceita as falsas mudanças. Nosso compromisso por um mundo sem cárceres, nosso compromisso pela vida e pela dignidade das irmãs e irmãos em situação de privação de liberdade, não se conjuga mais com soluções cínicas e mudanças de aparência.
Como diz a ativista estadunidense Angela Davis: “lutar contra prisões em massa e pena de morte é lutar contra escravidão dos tempos modernos. Esse é nosso compromisso imediato: fim do genocídio! Fim da escravidão moderna! Desencarceramento ou ainda mais barbárie!

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