Por Catarina Duarte e Jeniffer Mendonça
Da Ponte Jornalismo
O primeiro presídio privado do governo Lula 3 foi concedido nesta sexta-feira (6/10) a uma empresa que já foi punida por falta de higiene na preparação das quentinhas que fornecia aos presos do Rio de Janeiro.
Única concorrente, a Soluções Serviços Terceirizados será responsável pela construção e administração do Presídio de Erechim, no Rio Grande do Sul, estado que adotou de forma inédita em sua história o modelo de Parceria Público Privada (PPP) no sistema penitenciário. O contrato tem valor estimado de R$ 2,5 bilhões.
O leilão do Presídio de Erechim ocorreu no prédio da B3, antiga Bovespa, no centro da cidade de São Paulo, por volta das 11h. Essa foi a segunda tentativa do governo do Rio Grande do Sul para a construção da unidade em forma de PPP. Em julho do ano passado, o edital foi cancelado por falta de empresas interessadas.
Movimentos sociais, partidos políticos, sindicatos e entidades voltadas à questão prisional protestaram em frente à sede da B3 após o leilão ter acontecido, por volta das 12h. Aos gritos de “não à privatização”, eles contestaram o modelo e pediram revogação de medidas federais que promovem isenção fiscal para o setor.
“Eu estive numa unidade prisional privatizada da Bahia e tudo é de ruim dentro da unidade. Os funcionários contratados estão com baixos salários e existe uma rotatividade grande porque não suportam o ambiente, o que também prejudica a pessoa privada de liberdade”, criticou, durante o ato, Vera Lucia Dalzotto, integrante da coordenação nacional da Pastoral Carcerária que atua no Rio Grande do Sul. “É uma precariedade em tudo: os presos não tinham banheiro, faziam cocô dentro de um saco plástico, as comidas eram da pior qualidade possível. A pessoa privada de liberdade é tratada como uma fruta podre, como uma mercadoria”.
Para Fabio Campos, da Associação de Amigos e Familiares de Presos e Presas (Amparar) e da Frente Estadual pelo Desencarceramento, a privatização aumenta as violações de direitos de pessoas privadas de liberdade. “É uma situação muito grave porque se trata de ampliar essa perspectiva de encarceramento em massa no Brasil. A gente é o terceiro país que mais encarcera no mundo e já tem algumas experiências de presídios privatizados que são extremamente ruins. A gente está se equiparando ao modelo estadunidense de aprisionamento de pessoas e isso é extremamente complicado: se as condições das prisões já estão colocadas para uma seletividade [pessoas negras, em maioria], os presos vão ter um custo cada vez maior para a iniciativa privada para gerar mais lucro ainda”.
A vencedora do leilão, a paulista Soluções Serviços Terceirizados, será responsável pela administração do presídio por 30 anos.
Além de gestão prisional, o site da empresa informa que ela oferece serviços de limpeza, manutenção predial e alimentação. Essa última já foi alvo de suspensão de contrato por parte do governo do Rio de Janeiro. Reportagem da TV Globo, exibida em junho do ano passado, mostrou que a empresa foi proibida de fazer contratos com a administração pública por um ano após um relatório do Conselho Regional de Nutricionistas .
Uma vistoria feita na cozinha da empresa encontrou equipamentos em mau estado de conservação, alimentos armazenados sem identificação, restos de carne que pareciam ter sido recongelados e falta de documentos que comprovassem o controle da temperatura ou higienização do caminhão usado pela empresa. Em 2019, segundo o G1, imagens mostraram uma infestação de ratos na fornecedora que, na época, também era responsável por alimentação de escolas municipais em Nova Iguaçu (RJ).
No protesto na capital paulista, a escolha da gestora também foi criticada. “No bandejão da Unicamp, ela [a empresa] tem várias denúncias de irregularidades, de vender comida estragada, de vender comida com objetos dentro, de infestação de ratos, de trabalhadora que morreu em serviço, corrupção”, declarou o estudante e youtuber Thiago Torres, conhecido como Chavoso da USP. “O mais absurdo é saber que tem o aval do governo Lula para essa desumanidade”.
Manifestantes também temem a privatização da Fundação Casa, responsável pelo cumprimento de medidas socioeducativas por adolescentes em conflito com a lei, já que a gestão sob o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) estuda a medida.
“O governo de São Paulo já vem com uma política para privatizar a Sabesp [companhia de saneamento básico], para privatizar o Metrô e as ferrovias, e nós sabemos que a privatização não gera lucro para os trabalhadores e sim para os grandes empresários. Isso só encarece os serviços para a população do estado de São Paulo e a nível nacional”, disse Emerson Feitosa, diretor do Sindicato dos Trabalhadores nas Fundações Públicas de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente em Privação de Liberdade de São Paulo (Sitsesp).
Incentivo do governo Lula
O que acendeu o alerta das entidades ligadas à defesa dos direitos humanos e principalmente das que atuam com o cárcere, foi a aprovação em abril deste ano do decreto 11.448/2023. Assinado pelo vice-presidente Geraldo Alckmin, o texto incluiu a segurança pública e o sistema prisional entre as áreas que podem receber financiamento por meio de debêntures incentivadas — um tipo de isenção fiscal.
Debêntures são títulos emitidos por empresas para financiamento de projetos próprios. Esse tipo de empréstimo é dividido em de duas formas: comuns e incentivadas, tendo como principal diferença entre elas o abono no imposto de renda. No caso das incentivadas, a isenção na cobrança do imposto ocorre porque as empresas vão investir em segmentos de interesse do governo, como educação, saneamento básico e agora, graças ao decreto do governo Lula, também as prisões.
A revogação da medida é exigida em caráter de urgência por 87 entidades que assinam uma nota técnica direcionada ao governo federal. Elas argumentam que essa política incentiva a privatização do sistema prisional brasileiro (veja o documento na íntegra aqui).
“É essencial relembrar que o Brasil figura, desde 2017, como a terceira maior população carcerária do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos e da China, que, ao contrário do Brasil, vêm progressivamente reduzindo suas taxas de aprisionamento. Com relação ao encarceramento feminino, os dados são ainda mais alarmantes: em 2022, o Brasil ultrapassou a Rússia e assumiu a terceira posição no ranking dos países com mais mulheres atrás das grades”, diz o texto.
O impacto dessa nova política de incentivo, defendem as entidades, se faz sentir no leilão do presídio de Erechim. O Rio Grande do Sul possui população prisional de 41.907 mil pessoas, segundo dados da Secretaria de Sistema Penal e Socioeducativo do estado. Para a construção da unidade, o governo gaúcho conseguiu financiamento de R$ 150 milhões do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).
A promessa é que a unidade de Erechim seja entregue em dois anos e tenha capacidade de para atender 1,2 mil presos. O processo foi iniciado em 2019 e a empresa vencedora será responsável pela construção do complexo prisional e também pela operação do presídio (incluindo a manutenção dos espaços, limpeza e apoio logístico para movimentação dos presos, papel fundamentalmente ligado aos agentes prisionais).
Há aqui um ponto que também é alvo de crítica por parte das entidades signatárias da carta. O governo federal é avalista dos estados durante a etapa de obras e de execução dos serviços. Isso significa que ele pagará ao ente privado os valores contratados caso os estados não consigam fazê-lo.
Neste modelo de concessão, o governo do Rio Grande do Sul vai pagar por 30 anos à empresa vencedora pela gestão do presídio. No site do governo do Estado, a PPP é defendida pela possibilidade de “trabalho, educação e reinserção social” dos presos e ainda pelo “uso da tecnologia na gestão prisional”.
Entidades criticam privatizações
As entidades criticam a ideia que a privatização dos presídios significa melhorias no sistema. Irmã Petra Pfaller, coordenadora nacional da Pastoral Carcerária, afirma que esse tipo de ação acaba tratando os presos como mercadoria.
“A privatização dos presídios, ao contrário do que se afirma no discurso amplamente disseminado na sociedade, não é uma solução mágica que resolve todos esses problemas e as violações de direitos presentes no cárcere; pelo contrário, a privatização aprofunda esses problemas, além de tratar os presos e presas como mercadoria, pois, como investimento privado, é obrigatório que o Estado garanta que as prisões privadas tenham um determinado número de pessoas presas”, diz.
Ela destaca ainda que unidades com cogestão pública e privada já foram palco de massacres. Em 2017, 56 presos foram assassinados em um massacre e outros 59 dois anos depois em nova chacina, no Complexo Penitenciário Anísio Jobim, em Manaus. O Compaj era gerido por uma empresa privada à época da rebelião.
Na ocasião, o Mecanismo Nacional de Prevença o e Combate a Tortura (MPCT) fez visita às unidades amazonenses privatizadas, incluindo o Compaj, e afirmou que a gestão tercerizada facilita episódios de violência.
“Nós observamos nas cogestões e parceiras público-privadas uma precarização ainda maior das cadeias. Não há nenhum ganho substantivo com a privatização, pelo contrário, houve muito mais gasto”, comenta Camila Antero, coordenadora geral do MPCT nacional.
Outro aspecto que preocupa as entidades é a possibilidade de a terceirização da defesa pública e gratuita feita pelas Defensorias. Com a privatização, defendem os grupos críticos, as empresas assumem a prestação de assistência jurídica aos presos por meio de advogados contratados por elas.
“Isso não só é inconstitucional, porque seria uma prerrogativa da Defensoria, mas o pior é que se pode desconfiar que não seja do melhor interesse da prisão privada que seus ‘clientes’ sejam colocados em liberdade”, pontua Diego Polachini, coordenador-auxiliar do Núcleo Especializado de Situação Carcerária (NESC) da Defensoria Pública de São Paulo.
Diego explica que essa previsão depende do edital de contratação e cita que esse modelo é aplicado no Complexo Penitenciário Público-Privado (CPP) de Ribeirão Pires, em Minas Gerais. No caso do presídio de Erechim, não há no contrato menção a assistência jurídica por parte da empresa vencedora do leilão.
A avaliação das entidades é de que privatização insere o sistema prisional numa lógica empresarial que visa ao lucro. “Não tem como você lucrar com algo que não deveria existir”, pontua a cientista social Juliane Arcanjo, pesquisadora do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC) e ativista da Marcha de Mulheres Negras de São Paulo e da Amparar.
“Há um conflito de interesses. Os agentes privados vão querer lucrar e se desenvolver financeiramente. Enquanto isso, o interesse social e humanitário é de reduzir o encarceramento e consequentemente a criminalidade”, diz Juliane.
Ela também argumenta ainda que pode haver falta de transparência nos dados sobre os presos nessas instituições. O impacto disso, além de ocultar possíveis violações, é o de não se ter dimensão dos problemas enfrentados pela população encarcerada.
“Como a gente vai usar a Lei de Acesso à Informação se o ente é privado? Isso é um grave problema porque se faz política pública através de dados”, pontua.
O que diz o governo federal
A Ponte procurou os ministérios da Fazenda e Justiça e Segurança Pública sobre os pontos trazidos ao longo da reportagem, mas não houve retorno. O espaço segue aberto.
O que diz o governo do RS
Procurada sobre o leilão e os pontos criticados pelas organizações, o governo gaúcho encaminhou a seguinte nota:
A Secretaria de Parcerias e Concessões do Governo do RS informa que todos os trâmites legais da PPP Prisional de Erechim estão sendo cumpridos.
Até o momento, foi avaliada a pré-qualificação da empresa definida no leilão, atestando que ela possui experiência em operação similar ao objeto da licitação.
Eventual impedimento de contratar com a administração pública será apurado na fase de habilitação da empresa.
De qualquer modo, o contrato da PPP prevê indicadores de desempenho que buscam garantir a qualidade dos serviços prestados, impactando, inclusive, na remuneração da empresa.
O que diz a Soluções Serviços Terceirizados
A Ponte procurou a Soluções Serviços Terceirizados pelo e-mail e telefone descritos no site da empresa. As chamadas telefônicas foram feitas em horários diferentes e em todos os momentos a ligação não foi atendida. Uma mensagem eletrônica informava que a linha estava ocupada. Também não houve retorno por e-mail.