Artigo: Mês da visibilidade lésbica e mulheres encarceradas

 Em Mulher Encarcerada, Notícias

Em agosto, mês dedicado à visibilidade lésbica, é essencial direcionar nosso olhar para um grupo muitas vezes marginalizado: as mulheres lésbicas privadas de liberdade. Por trás – e para além – dos muros das prisões, existe uma complexa teia de situações torturantes que afetam desproporcionalmente e de uma forma cruel as mulheres lésbicas que estão e já passaram por dentro das unidades prisionais, as quais lidam, continuamente, com a repressão de suas identidades e sexualidades.

Inicialmente, vale mencionar que a interação entre punição e gênero revela uma realidade marcada por injustiças e desigualdades profundas. Infrações cometidas por mulheres muitas vezes carregam um peso desproporcional, o que faz com que essas mulheres tenham que enfrentar penas ainda mais severas, frequentemente em decorrência do desafio às normas de gênero e estereótipos pré definidos, muitas vezes advindos de julgamentos moralistas, inclusive de grupos religiosos. 

De acordo com dados publicados pelo Departamento Penitenciário Nacional, coletados entre os anos de 2000 ao 1° semestre de 2022, o número de mulheres encarceradas aumentou cinco vezes no Brasil¹. O sistema de justiça criminal, enraizado em uma estrutura concebida predominantemente por e para homens, perpetua essa desigualdade ao não considerar adequadamente as complexidades das experiências femininas, desigualdades sociais essas que ficam evidentes quando analisamos mais profundamente os dados publicados pelo Depen, o qual evidencia que 67,22% das mulheres encarceradas em 2022 eram pretas ou pardas. 

Para além da desigualdade social e racial tão presentes no sistema carcerário, a realidade de abandono afetivo e material dentro do sistema carcerário feminino agrava ainda mais o quadro, ilustrando a realidade de tortura e negligência vivenciada por mulheres privadas de liberdade. Com efeito, dentro das unidades prisionais, mulheres presas são submetidas a condições desumanas que resultam em um profundo isolamento social e emocional. A dificuldade no apoio de familiares, o preconceito e a discriminação recorrentes, e a escassez de políticas públicas que favoreçam essas visitas, amplificam o sentimento de solidão e desamparo. 

Diante da escassez de visitas, mulheres privadas de liberdade muitas vezes recorrem às redes de apoio que constroem dentro do próprio ambiente carcerário. Essas redes desempenham um papel crucial em proporcionar um senso de comunidade, solidariedade e suporte emocional para aquelas que enfrentam o isolamento dentro das unidades prisionais. É através dessas redes, também, que algumas mulheres passam a se envolver afetivamente/ter envolvimento amoroso durante os seus períodos de privação de liberdade.

Contudo, essas mulheres, bem como as demais que se identificam como lésbicas, passam por violações e violências que permeiam aspectos presentes, também, extramuros: a repressão da sexualidade feminina, a qual, especialmente quando se trata da sexualidade lésbica, é um reflexo de estruturas sociais profundamente arraigadas que buscam controlar e limitar a autonomia das mulheres, seus desejos e expressões íntimas. Ao longo da história, a sexualidade feminina é frequentemente enquadrada como algo a ser controlado, temido ou moldado para atender às expectativas sociais e patriarcais.

Dentro do ambiente carcerário, onde o controle é uma constante, a expressão da identidade sexual da mulher presa muitas vezes enfrenta uma hostilidade institucionalizada, com a sexualidade lésbica sendo frequentemente invisibilizada ou negada, perpetuando a crença de que a norma é a heterossexualidade (‘heterossexualidade compulsória’). Isso pode levar à negação das relações afetivas entre mulheres e à falta de reconhecimento de suas necessidades e direitos específicos. 

A repressão da sexualidade lésbica pode se manifestar através de estigmas, discriminação e até mesmo punições dentro do sistema prisional. Mulheres presas que se identificam como lésbicas podem enfrentar hostilidade por parte, principalmente, de policiais penais. 

À título de ilustração, em 2015, o Subcomitê da ONU para a Prevenção da Tortura relatou ter recebido, oriundas de unidades prisionais brasileiras, inúmeras “denúncias de espancamento, violência sexual, isolamento e formas direcionadas de violência, incluindo os chamados ‘estupros corretivos’ de mulheres lésbicas”².

No mesmo sentido, o Guia da Associação para a Prevenção da Tortura3 , publicado em dezembro de 2018, aponta que mulheres lésbicas estão particularmente expostas à violência por parte de funcionários das unidades prisionais, cenário que se agrava quando estão sob a supervisão de guardas masculinos. Nessa conjuntura, ainda, as mulheres que são percebidas pelos agentes de segurança como apresentando características “masculinas” podem se encontrar sujeitas a situações de assédio, abuso físico e até mesmo sujeitas à imposição de uma performatividade de gênero feminina. Essa repressão específica pode se manifestar através de abusos graves, incluindo os conhecidos “estupros corretivos” e a alocação em celas com pessoas presas do sexo masculino como forma de retaliação por recusar avanços indesejados por parte dos funcionários. Adicionalmente, essas mulheres podem ser forçadas ou coagidas a ter relações sexuais com funcionários do sistema prisional, muitas vezes sendo submetidas a essa situação em troca de favores como cigarros ou álcool. 

Ademais, o Guia também expõe relatos que indicam que mulheres lésbicas enfrentam uma maior propensão a serem alvo de punições disciplinares discriminatórias. Entre as medidas frequentemente aplicadas, destacam-se a segregação física daquelas que podem estar em relacionamentos, seja por meio de transferências para unidades ou estabelecimentos distintos, ou ao serem confinadas em celas de isolamento, por vezes durante extensos períodos. Com efeito, não há dúvidas de que a prática de destinar um indivíduo privado de liberdade a uma cela punitiva meramente por expressar afeto por alguém de seu próprio gênero constitui tratamento desumano ou degradante.

Outro aspecto que demonstra mais um tipo de violência vivenciada por mulheres presas são as dificuldades postas para a garantia do direito de receber visita íntima de suas companheiras. No Brasil, apesar de haver explícita previsão na Resolução num. 4 do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (art. 2º O direito de visita íntima, é, também, assegurado às pessoas presas casadas entre si, em união estável ou em relação homoafetiva), e de existir, no plano internacional, decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos que condenou o Estado colombiano por ter violado direitos à igualdade e não discriminação, a não sofrer ingerências abusivas em sua vida privada, às garantias judiciais e proteção judicial, e à integridade pessoal, pela negativa das autoridades penitenciárias e judiciais de permitir a visita íntima de mulher presa com sua companheira (Caso Marta Alvaréz), ainda há relatos de maior burocratização para mulheres conseguirem visitas íntimas⁴. 

Esse posicionamento afronta, também, as determinações internacionais quanto às condições mínimas de tratamento para as pessoas em privação de liberdade, visto que a previsão de nº 58 das Regras de Mandela estabelece que “onde forem permitidas as visitais conjugais, este direito deve ser garantido sem discriminação e as mulheres reclusas devem exercer este direito nas mesmas condições que os homens”. Essa preocupação em assegurar a mesma forma de contato com o mundo exterior às mulheres privadas de liberdade, por sua vez, obedece a primeira previsão das Regras de Bangkok, que aponta para a essencialidade de consideração das distintas necessidades das mulheres presas na aplicação das Regras, sendo que “a atenção a essas necessidades para atingir substancial igualdade entre os gêneros não deverá ser considerada discriminatória”. 

Diversas são as violências sofridas por mulheres dentro do sistema carcerário, situações que evidenciam o machismo, o patriarcado, o racismo e diversos outros preconceitos enraizados em nossa sociedade, fatores os quais construíram e consolidaram um sistema penal torturante e doentio que afeta não apenas as mulheres encarceradas, mas todas aquelas envoltas no sistema criminal. 

As prisões reproduzem e intensificam as diversas formas de violência enfrentadas cotidianamente por grupos mais marginalizada de nossa sociedade, sendo assim, políticas e estratégias de melhoria das condições de vida dentro do cárcere voltadas para estas mulheres são ilusórias e provisórias, apenas uma política de desencarceramento total podem de fato garantir a liberdade e o bem viver dessas mulheres. 

 

Fontes:
¹https://app.powerbi.com/view?r=eyJrIjoiNTFkZDA5MDEtZmJjNi00YjRhLTlkOTUtYWUxZjE3NWE3N DU5IiwidCI6ImViMDkwNDIwLTQ0NGMtNDNmNy05MWYyLTRiOGRhNmJmZThlMSJ9&pageName= ReportSectionf330443a7e0c245a2804 

²Oitavo Relatório Anual do Subcomitê da ONU para a Prevenção da Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, 26 de março de 2015, §67.

³https://www.apt.ch/sites/default/files/publications/apt_20181218_por-uma-protecao-efetiva-daspessoas-lgbti-privadas-de-liberdade-um-guia-de-monitoramento-final.pdf

⁴BORGES, Paulo César Corrêa (Org.). Sistema penal e gênero: tópicos para a emancipação feminina. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2011. Disponível em: <http://hdl.handle.net/11449/109196>

 

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