Artigo: Ultrapassando a punição colonial – a caminho da comunicação não-violenta

 Em Justiça Restaurativa, Notícias

Irmã Petra, Padre Gianfranco, Vera Dalzotto e Lucas Gonçalves

O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me consagrou com a unção para anunciar a Boa Nova aos pobres; enviou-me para proclamar a libertação aos cativos e aos cegos a recuperação da vista; para dar liberdade aos oprimidos e 19 e proclamar um ano de graça da parte do Senhor”.[Lc. 4,18-19] 

Como nos ensina Jesus, o nosso horizonte visa alcançar um mundo sem prisões, onde os conflitos sociais sejam geridos pela própria comunidade, sem a presença da violência Estatal. Por isso, queremos construir relações que sejam baseadas na não-violência, onde haja igualdade sócio-racial e não haja exploração. 

O projeto de vida que Jesus apresenta na sinagoga de Nazaré, sua terra de criação, parte do pressuposto de que Ele é parte deste processo de libertação, colocando sua vida ao serviço disso. Os povos originários desse nosso país, povos da floresta e da natureza, guardiões da Casa Comum, desenvolveram uma milenária sabedoria para enfrentar os desafios da vida e o fazem de uma forma comunitária e coletiva, onde todos os membros da comunidade tem vez e voz, contribuindo na solução dos desafios diários que se vivem no interior da própria comunidade e dos grupo de famílias.

O processo coletivo e comunitário de gestão da vida do grupo familiar é garantia de que o recurso à violência seja entre os povos nativos algo desconhecido e por certos versos bastante raro. Por exemplo, entre o povo Yanomami, a solução das grandes questões acontece num longo diálogo coletivo e comunitário que se desenvolve durante a noite, na busca da compreensão e de chegar a uma decisão que permita beneficiar a todos.

Importante na condução deste processo é a presença de uma liderança comunitária, que se constrói não sobre o elemento do poder, mas sobre o convencimento por meio da palavra. Importante neste contexto são também os xamãs, cuja ação é importante para o equilíbrio holístico da comunidade e suas relações com a natureza, o ambiente, os outros seres. 

Por essa razão a comunicação dos povos nativos é não violenta por natureza, ela procura captar e despertar nas outras pessoas a empatia para o que é dito pelo outro, e pela proposta que ele faz de solução da questão que eu retomo e enriqueço com a minha contribuição.

A comunicação não-violenta promove essa construção, pois visa retirar a violência de nossas expressões, extrair agressões de tudo aquilo que expressamos; visa permitir que nos conectemos profundamente com o outro e com nós mesmos, e também vivenciar a empatia, o respeito, a compaixão e a paz nas nossas relações cotidianas. Mas para chegar a um mundo onde a comunicação não-violenta se alastre e se finque nas raízes da nossa sociedade, para que ela seja praticada cotidianamente pelas pessoas no tecido social, precisamos conhecer e combater as violências estruturais que nos rodeiam. 

E logo de início, percebemos que há um entrelaçamento sólido entre o colonialismo racista no Brasil e a punição. Esta última, parte estruturante da sociabilidade capitalista, ainda condiciona e molda a forma como a branquitude se relaciona diariamente, a forma como ela reage às ameaças ao privilégio, a forma como ela se enfurece diante de micro-frustrações individuais, enfim, a forma como ela vive. Há, nesse sentido, uma simbiose umbilical entre o punitivismo e o racismo. 

Em Mt, 2, Herodes sente a ameaça ao seu poder com o nascimento de Jesus, migrante racializado e filho da classe trabalhadora. Em resposta, a figura do Estado evoca a punição: manda matar todas as crianças com menos de 2 anos de idade.

Para que a elite branca brasileira continue regendo os espaços de poder, ela instrumentaliza a punição no interior da política, do direito, da economia e das múltiplas faces do tecido social, fazendo com que a violência continue atacando as pessoas pretas. 

O ápice dessa arquitetura sangrenta de punição está no âmago do sistema penal brasileiro, símbolo máximo da punição e da tortura. As amarras da contemporânea justiça brasileira com o colonialismo são um dos principais pilares de sustentação do racismo e da exclusão. São as pessoas majoritariamente jovens e negras vítimas da captura diária pelos aparatos policiais e do abandono nas catacumbas da modernidade, para que definhem até a morte. 

É exatamente essa violência colonial, ancorada no punitivismo capitalista e ainda regente das relações raciais, que precisamos destruir. É contra essa força motora que precisamos nos juntar, desmanchar suas engrenagens e lutar por um mundo sem cárceres. 

Como trilhar esse caminho de ultrapassagem da punição colonial, ainda estamos descobrindo e construindo, juntes. Mas é palpável que precisamos superar a violência e a punição em nossas relações sociais. E a comunicação não-violenta tem contribuído profundamente para mentalizarmos e concretizarmos uma sociedade que extermina as amarras do racismo e do capitalismo, e que alimenta uma justiça restaurativa.

Quando Marshall Rosenberg desenvolve seu trabalho sobre a Comunicação Não-Violenta (CNV), ele está tentando construir novas formas de nos relacionarmos, desconstruindo as estruturas violentas que nos atravessam. Nesse sentido, ele ressalta:

O que eu quero em minha vida é compaixão, um fluxo entre mim mesmo e os outros com base numa entrega mútua, do fundo do coração. (…) Desde então, identifiquei uma abordagem específica da comunicação — falar e ouvir — que nos leva a nos entregarmos de coração, ligando-nos a nós mesmos e aos outros de maneira tal que permite que nossa compaixão natural floresça. CNV é uma forma de comunicação que nos leva a nos entregarmos de coração”.

Um mundo sem prisões está sendo direcionado, nesse sentido, para um mundo onde a comunicação não-violenta estrutura as relações sociais, onde haja igualdade sócio-racial e uma justiça que restaura. 

Alcançar a CNV, portanto, exige uma reformulação estrutural da forma como cada um se expressa e ouve os demais. Exige mudança. Esses pilares dialogam profundamente com a justiça restaurativa e a abolição das prisões. É exatamente aqui, nesses pilares, que a Pastoral Carcerária alça seus voos institucionais. Ao propor um curso sobre CNV para agentes de Pastoral, buscamos levar e disseminar as proposições concretas e revolucionárias de um mundo sem prisões, onde haja sociabilidades não-violentas.  

Conforme ensina o prof. Horácio Zarate, da Universidad de Castilla La Mancha, “a justiça restaurativa não é um movimento de reforma do sistema penal, uma vez que objetiva sua abolição .  (…) Do que se deduz que a justiça restaurativa não é um complemento do sistema penal, porque busca a sua substituição por outras formas de resolver conflitos. Ao revés, as perspectivas teóricas e práticas que somente se limitam a propor alternativas sem vislumbrar superação da pena apenas logram expandir a rede de controle social”. 

Louk Hulsman chegou a afirmar que “com a abolição do sistema penal, toda a matéria de resolução de conflitos, repensada numa nova linguagem e retomada numa outra lógica, estará transformada desde seu interior. A renovação deste sistema, naturalmente, não eliminaria as situações problemáticas, mas o fim das chaves das soluções estereotipadas por ele impostas permitiria que, em todos os níveis da vida social, irrompessem milhares de enfoques e soluções que, hoje, mal conseguimos imaginar”. Essa “nova linguagem” pode ser guiada pelas premissas da comunicação não-violenta, e é ela que queremos construir. 

Por isso, diante do colonialismo racista e violento que ainda estrutura as nossas relações sociais, e diante dos ensinamentos de Jesus, precisamos fazer essa ultrapassagem: acabar com a punição colonial e buscar um mundo sem cárceres, prismado pela não-violência. 

Convidamos você, agente de Pastoral, a entrar conosco, em união, nesse aprendizado da Justiça Restaurativa e da Comunicação Não-Violenta. Participe do nosso curso. 

DEIXE UM COMENTÁRIO

Volatr ao topo