Claudio Antonio da Cruz, que adota o nome artístico Kric Cruz, conta à Pastoral Carcerária Nacional sobre o lançamento do seu livro Cria do Governo, que ocorrerá no próximo dia 26, às 19 horas, no Sesc 24 de Maio.
Kric comenta sobre a perda do seu manuscrito, planejado durante seus anos dentro do sistema prisional: “o manuscrito do livro foi destruído pela PM, rasgaram tudo, mas estava dentro da minha cabeça, só se quebrassem meu cérebro… pode quebrar meu corpo, mas meu cérebro não vai apagar”.
Ele também fala sobre a importância dos seus trabalhos sociais e culturais, e relembra os momentos de terror que passou durante o Massacre do Carandiru.
Confira a entrevista completa:
De onde surgiu a ideia para o livro?
Cria do Governo é um livro baseado na minha história, mas também na história de pessoas que eu conheci ao longo dos anos, pessoas que viveram as mesmas adversidades que eu. É também uma ficção, porque tem muitos assuntos que são da mente imaginária do autor.
Esse livro começou a ser elaborado na Casa de Detenção do Carandiru, quando eu retornei das minhas transferências para o castigo. Eu comecei a escrever ele assim que eu já estava formado, quando estava com uma situação melhor.
É a história do Número Um, eu coloquei números nos personagens para não ter identificação de nomes. Ele é uma junção das diversas pessoas que já se foram. Esse tempo que eu estive preso, eu vi muita coisa acontecer, cheguei em 1979, a época que estava acontecendo a anistia geral e irrestrita. A democracia estava surgindo no país, uma alegria imensa, muitos presos seriam libertados.
Sim, foram libertados muitos presos, mas presos políticos. Os presos comuns foram descartados, eu cheguei achando que ia encontrar a liberdade, mas nós éramos os corpos descartáveis. Esses presos comuns não seriam soltos e não teriam benefícios. A ditadura acontecia ainda dentro do presídio, dentro das penitenciárias, que eram poucas, e ao invés de começar o desencarceramento, começou o encarceramento em massa.
Havia um novo produto a ser colocado no lugar daqueles presos políticos que saíram. Numa cela onde cabiam dois ou três, vinte ou trinta ocuparam o lugar. Começou a ter aquele enxame de preso, aquela superpopulação.
A situação foi crescendo, e mesmo o governo democrático não colaborou nem um pouco com o desencarceramento. Quando se trata de preso comum, preso pobre da periferia, não tem melhoria e nem ressocialização. Não tem nenhum sentido de existir prisão.
Como os projetos culturais entraram na sua vida?
Tínhamos uma turma que estudava, que fazia cultura, isso estava fora do que a mídia mostrava, que era só o crime, as mortes, tudo de ruim que acontecia. A gente precisou de um grito de alerta. E esse grito não seria com rebeliões, como muitos faziam. A cultura tinha que chamar atenção de outra forma, e eu vi um espaço cultural lá dentro.
Só existia uma maneira: gerar nosso trabalho com a cultura e a arte. Ninguém vai dizer que estamos pedindo esmola, temos grupo de teatro, de samba, de rap, pessoas que cantam, pintam, lutam boxe, e disso saem várias profissões.
A ideia do programa foi enviada para o juiz, que aceitou a proposta, e começamos a fazer cultura e chamar atenção, levando a mídia para dentro. A TV Cultura foi uma das responsáveis, levou um curso de vídeo e som. Com esse curso criamos um documentário, para mostrar como a cultura pode ressocializar alguém sem ajuda do Estado.
Essa cultura e educação novas, atraindo cursos e até a faculdade para dentro, mostrou como houve uma mudança. O lançamento do meu livro hoje serve como resposta, uma das melhores coisas da minha vida, junto com o CD já gravado, e também participei de um filme como ator que logo vai estrear.
Você nunca pensou em desistir de escrever o manuscrito?
O manuscrito do livro foi destruído pela PM, rasgaram tudo, mas estava dentro da minha cabeça, só se quebrassem meu cérebro… pode quebrar meu corpo, mas meu cérebro não vai apagar. E eu reescrevi ele de novo, foi uma luta muito grande, ficou um tempo escondido num local.
Aqui fora não conseguia fazer um avanço, então houve uma junção de pessoas que me ajudaram e que eu quero agradecer. Aliás, queria agradecer a todos vocês que participaram dessa vakinha, sem vocês acho que não conseguiria. Sou grato à Pastoral Carcerária, à Amparar, à Frente do Desencarceramento de São Paulo, à Agenda Nacional Pelo Desencarceramento. Não mediram esforços para que esse livro fosse publicado um dia.
Por que você escolheu os fanzines como forma de divulgação?
Essa forma de divulgação que eu encontrei, o fanzine, eu estou voltando ao passado onde enfrentamos a ditadura, eu era criança e fui torturado. Esse corpo conhece o quanto a ditadura é cruel com as pessoas.
Voltamos ao passado em homenagem àquelas que se foram, e que foram encontradas as ossadas em Perus, onde hoje eu tenho o prazer de ministrar uma oficina cultural, dando testemunho para que as pessoas não esqueçam que no brasil já houve escravismo e uma ditadura muito cruel, e que ainda existe o genocidio e massacres.
Você fez parte do grupo de rap Comunidade Carcerária, quem vocês planejavam atingir com as letras e as músicas?
O Comunidade Carcerária surgiu assim: a gente tinha aquele propósito de fazer cultura, e um menino vivia cantando aqui, o outro ali, só que eles cantavam música dos outros. E eu falei que para fazer parte desse trabalho cultural, teriam que escrever suas próprias composições, só entrariam músicas inéditas.
A Comunidade Carcerária deu origem a outros grupos e trabalhos culturais. Os meninos assimilaram o trabalho e não vão voltar mais para a prisão, a não ser que seja para fazer trabalho social como eu faço hoje em dia.
Quando você chegou no Carandiru, ficou no Pavilhão 9?
Fui para a Casa de Detenção ainda novo, para o Pavilhão 9, mas eu morei ali por pouco tempo. Eu não sabia ler e escrever, fui aprender ali dentro, era totalmente ignorante e mergulhado na vida do crime.
Era um caos, então tinha que agir da maneira que o caos exigia. Se vou viver trinta anos aqui dentro, vou ter que me adaptar. É sempre aquela questão de momentos, mas por conta dos anos adquiri conhecimento e nunca tomei paulada ou facada de ninguém, a não ser do Choque e de funcionários, que eu apanhei muitas vezes, mas de companheiros nunca sofri nenhum atentado.
E com o tempo, com conhecimento e com estudo a minha mente clareou, aprendi a ler e hoje eu amo. Depois que aprendi não parei mais, então a mente foi mudando e procurando saber o que era esse ser, por que tudo isso e como sair disso.
Essas perguntas talvez caibam a nós, as pessoas que procuram em Deus as respostas. Eu procurei saber das minhas origens, agora que minha a minha mente está clareada eu vejo que não nasci para aquilo.
Eu cheguei com a mente travada, e talvez a saude mental um pouco fragilizada com tanta tortura, mas eu não podia deixar isso atingir meu cérebro, então eu busquei Deus. Eu frequentava muita missa, sempre vinham os padres, a Irmã Miriam, a quem sou grato.
E eu sou grato à Pastoral Carcerária, pudemos entrar e filmar lá dentro graças a eles. Mas filmar o castigo era difícil, as pessoas todas deitadas, aquela podridão, e a Ir. Miriam estava com a gente ali.
Você também faz um trabalho social para a Fundação Casa, pode comentar um pouco sobre?
Devido aos meus trabalhos culturais pelo CENPEC (Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária), eu fui fazer uma palestra, começaram a me chamar para outras e foi expandindo.
É uma palestra show, onde a gente não leva conselhos, mas leva ideias. Mostrar àqueles meninos que estão lá as consequências do que eu passei.
A diferença entre o Juizado de Menores e a Fundação Casa não é muito grande. O Estatuto da Criança e do Adolescente peca em ter esse nome, pois aqueles meninos não são adolescentes, são menores infratores.
Eu nunca fui adolescente, eu nunca tive a oportunidade de ser, fui um menor infrator. Quando se trata do ECA, você está procurando ajudar só o adolescente, o menor infrator é descartado.
Eu tenho alunos do CEU (Centro Educacional Unificado), numa oficina que têm a mesma proposta, e o que vejo é que uns escolheram melhor e outros, pior. Eu mostro as consequências depois da maioridade, hoje você é menor infrator, mas um dia você vai ser maior infrator e sentenciado, se continuar no crime.
O sistema prisional hoje em dia não dá mais espaço para aparecerem novos Krics, não tem cultura, a educação é bastante minada. Mas tentamos continuar com a Leitura Liberta lá dentro, que é uma das melhores coisas para as mulheres, que tem origens com a PCr também.
É como se a gente levasse a educação e a cultura para lá e fizesse daquelas pessoas terroristas. Porque a educação para esse governo é coisa de terrorista.
Você estava no Carandiru durante o massacre, do que você se lembra?
O diretor de disciplina do Pavilhão 9 é o culpado por essas mortes. Ele correu lá na frente com mentiras, falou que era uma rebelião, e nós sabemos que não houve uma rebelião, era uma confusão de três presos.
Eles entraram já no intuito, era uma coisa premeditada, há muito tempo eles vinham prometendo matar a gente. E se fosse no Pavilhão 8 ia ter muito mais pessoas mortas, porque ali ficavam os experientes, os reincidentes, os que comandam a cadeia. Mas entraram no 9 e mataram um monte de moleque primário.
Da minha cela a gente perguntava o que estava acontecendo, para onde estavam indo, tinha sempre uns que ficavam olhando. Eu não ia olhar, de jeito nenhum, o medo de todo mundo é igual, não tem quem é valente.
Não se pode dizer que o preso confrontou a Polícia Militar, nos laudos e nas provas mostra que morreram com tiro na nuca. Então quando começou a entrada da PM, geralmente você ouve o barulho deles entrando, a tendência é eles sacarem as armas e revistarem, os presos vão saindo e eles vão batendo, e você escuta um “ai, ai, ai”. Naquele dia houve um silêncio total, e dali a pouco um monte de tiro, mas muito tiro, aquele grito sufocante, que a pessoa começa a gritar mas logo já morreu, você vê que foi um grito que secou.
Quem estava no 8 começou a cair em desespero, pensando o que aconteceria se eles fossem para lá. De repente saiu aquela primeira tropa e entrou uma outra, que começou a desmanchar as provas. Foi um momento de terror.
Tem um minuto de silêncio no futebol, que nem todo mundo consegue ficar quieto, mas naquele minuto todo mundo fez silêncio, só escutava os passos deles saindo e os da próxima tropa entrando.
Foi terrível, um dia que é difícil de tirar da mente. E aqueles meninos que estavam no 9 eram recém saídos da FEBEM (Fundação Estadual do Bem Estar do Menor), não tinham experiência, a maioria com inquérito que dava para resolver na rua, não ofereciam risco para sociedade, e foram esses que morreram.
Não que o experiente merecesse morrer, acho que ninguém merece terminar a vida numa situação dessas. Eles não viram aquelas pessoas como vida humana, mas como pessoas a serem exterminadas, e acho que eles queriam um extermínio ainda maior.
Foi um ato de loucura. Foram condenados, e a justiça agora 30 anos depois dá um tapa na cara da gente, eles aprovaram a impunidade da polícia, aprovaram o genocídio. A justiça, o juiz, os magistrados, os legisladores, têm total culpa nesse caos, porque eles dão oportunidade para a polícia matar, e depois anistiam eles.
Texto: Isabela Menedim
Edição: José Coutinho Júnior
Vídeo: Maria Ritha Paixão