Por Lu Sudré
Do Brasil de Fato
Uma política intervencionista, marcada pelo uso indiscriminado da força, estaria sendo adotada como padrão no sistema carcerário do Ceará. O alerta foi feito em abril pelo Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, órgão ligado ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, e reforçado pela Pastoral Carcerária Nacional após visita às unidades prisionais do estado em agosto.
As denúncias de violações nas cadeias cearenses cresceram após os ataques coordenados de facções criminosas no início do ano – que teriam ocorrido em represália às declarações de Luis Mauro Albuquerque Araújo, gestor da Secretaria Administrativa Penitenciária (SAP) criada em dezembro de 2018 pelo governador Camilo Santana (PT). Na época, Araújo afirmou não reconhecer as facções e que os detentos do estado não seriam mais divididos por vínculo com organizações criminosas.
O quadro se agravou com o fechamento de 90 cadeias públicas no interior do estado no mesmo período. A transferência, implementada pela secretaria sem consulta prévia a órgãos do poder Judiciário, intensificou a superlotação em cadeias da região metropolitana de Fortaleza.
As sinalizações da nova gestão penitenciária e a chegada de agentes da Força Tarefa de Intervenção Prisional, autorizados pelo governo federal, fragilizou ainda mais a situação dos detentos e motivou também a ida do Mecanismo ao Ceará.
Entre fevereiro e março deste ano, quatro peritos do órgão inspecionaram o Centro de Triagem do Estado, o Centro de Detenção Provisória e a Casa de Privação Provisória de Liberdade José Juca Netoe. Agressões físicas, verbais, restrições abusivas e castigos coletivos foram identificados nas três unidades.
Denúncias
Denúncias do uso indiscriminado de spray de pimenta foram recorrentes. De acordo com relatório produzido pelo Mecanismo, os agentes penitenciários, em geral, utilizam o spray quando os presos não conseguem manter a imobilidade e o silêncio exigido para a realização do chamado “procedimento”.
Implementado pela gestão de Mauro Albuquerque, durante o “procedimento” os presos devem permanecer sentados no chão, despidos, enfileirados, encaixados uns aos outros, com a mão na cabeça e olhando para baixo até segunda ordem. Os relatos afirmam que esse processo ocorre a qualquer momento, durante horas.
Cláudio Justa, integrante do Conselho Penitenciário (Copen), também questiona a legalidade do procedimento e o classifica como tortura institucional.
“Não há nenhuma disposição legal que garanta, que respalde, que esses ‘procedimentos’ possam ser realizados de forma rotineira. O que acontece no caso do secretário atual é que a lógica da exceção se tornou regra da gestão”, avalia.
Ele critica a decisão da SAP de fechar as unidades do interior do estado sem o planejamento adequado.
“Não houve uma ampliação da infraestrutura, mas teve uma ampliação do uso da força do Estado, de descer ao nível análogo à tortura. Para tentar corrigir e administrar o sistema que estava fora do controle e distante da legalidade, continua se distanciando da legalidade, mas agora em outro viés, pelo viés da violência”, afirma.
Luisa Cytrynowicz, assessora jurídica da Pastoral Carcerária Nacional, visitou diversas unidades prisionais cearenses em agosto. Ela endossa a denuncia de que o “procedimento” é ordenado sem justificativa e ocorre até mesmo durante a ação pastoral nas penitenciárias.
“Um momento de visita religiosa, que seria um momento de partilha e celebração conjunta, virou um momento em que eles foram obrigados a ficar em um procedimento rígido, claramente humilhante e muito desgastante, física e mentalmente”, conta a advogada.
Ela acrescenta ainda que o “procedimento” do Ceará está sendo utilizado como modelo em prisões de outros estados como Roraima e Rio Grande do Norte, assim como outras ações rígidas e militarizadas.
“Vi um preso retornando do atendimento médico em uma unidade prisional e os agentes foram colocá-lo de volta na cela. A cela inteira teve que entrar em ‘procedimento’ para isso e um dos agentes empunhou a arma direcionada para a cela no momento de abri-la, deixando muito claro que se alguém se movimentasse para fora do ‘procedimento’, mesmo que isso não significasse nenhum risco para a segurança de ninguém, poderiam atirar. Isso na presença da Pastoral Carcerária. O cotidiano é muito hostil e agressivo, marcado por violações”, lamenta Cytrynowicz.
Truculência
Outra grave violação identificada pelo Mecanismo de Prevenção e Combate à Tortura, que devido a sua atuação em defesa dos direitos humanos sofreu intervenções do governo Bolsonaro, foram lesões nas mãos dos presos. Muitos detentos estavam com os dedos quebrados devido à retaliações enquanto estavam na posição de “procedimento”.
A prática foi defendida abertamente por Mauro Albuquerque durante audiência pública realizada na Câmara Municipal de Natal no dia 12 de setembro de 2017, quando era secretário estadual de Justiça e da Cidadania.
Para ele, os agentes penitenciários deveriam lesionar dolosamente os dedos das pessoas presas com o intuito de prevenir eventuais agressões. “Quando se bate nos dedos – falo isso que não é porque não deixa marca nos dedos não… porque deixa marca – é para ele não ter mais força para pegar uma faca e empurrar num agente, é para não ter mais força para jogar pedra”, disse.
Laudos de lesões corporais realizados dias antes da visita do Mecanismo identificaram um padrão de lesões e ferimentos nas cabeças, nas mãos e dedos dos detentos, indicando que as agressões foram realizadas enquanto eles estavam em posição de rendição.
O documento do Mecanismo também detalha que “procedimentos” foram realizados com os presos desnudos durante o dia sob o sol escaldante do Ceará, enquanto eram ameaçados e humilhados verbalmente por agentes prisionais e integrantes da Força Tarefa de Intervenção Prisional.
Condições subumanas
A retirada de pertences pessoais e restrição quase absoluta da comida entregue por familiares, que complementam a alimentação das unidades prisionais, assim como a retirada de itens de higiene, também seria regra no sistema prisional no Ceará.
O contexto de superlotação agrava as situações. Segundo dados da secretaria, existem 32 unidades prisionais no estado com capacidade total de 11.651 vagas. No entanto, a população carcerária recolhida é de 24.702 pessoas.
“As celas feitas para duas pessoas, e que tinham duas pedras como se fossem beliches de cama, tinham 18, 20 presos. Na posição de procedimento, não sobrava um espaço de chão vazio. Dormiam 20 em um espaço pra dois, sem colchão. Em um espaço que eu não conseguia sequer visualizar como seria possível todos eles deitarem, mesmo considerando todo o chão disponível, uma vez que eles dormem no chão”, relembra Luisa Cytrynowicz.
Há também a prática indiscriminada de sanções coletivas como a restrição ao banho de sol e até mesmo de acesso a água.
Segundo a advogada, muitos detentos relataram meia hora ou apenas uma hora de banho de sol por dia, sendo que até mesmo o Regime Disciplinar Diferenciado (RDD), mais rígido que os demais, garante duas horas de banho de sol diárias.
Outro relato comum é de que os presos são obrigados a permanecer em silêncio durante todo o dia. “Eles não podem conversar alto, não podem cantar, não podem louvar. Em um dos momentos de oração que fizemos, os presos falaram que fazia muito tempo que eles não podiam cantar uma música religiosa, um louvor, porque eram proibidos”, detalha Cytrynowicz.
Dupla punição
De acordo com depoimentos colhidos pela Pastoral Carcerária Nacional em agosto, a transferência dos presos do interior do estado para a região metropolitana de Fortaleza onera ainda mais famílias pobres, que são obrigadas a gastar mais com deslocamentos para a visita.
Há ainda a exigência de uniformização aos familiares, inclusive às crianças. Desde a chegada do novo secretário da SAP, as visitas só entram se estiverem vestindo calça cinza, blusa branca e chinelo branco, assim como os presos.
“É o começo do inferno é isso daqui”, disse uma familiar em condição de anonimato. “Todo aquele que erra tem direito de ter o perdão, de se consertar e não de passar por uma situação dessa de não ter acesso, não ter nada, de ser tratado como lixo, ser humilhado, a família ser constrangida. É isso que está acontecendo aqui”, denunciou.
Os familiares também denunciam as agressões físicas contra os detentos. “Eles chegam quebrando tudo, jogam tudo fora. Eles querem voltar a ditadura mesmo, massacrar os presos até a família desistir e o preso morrer lá”, declarou outro familiar.
“Profundas mudanças”
Em nota enviada ao Brasil de Fato, a SAP afirma que o sistema penitenciário do Ceará estaria passando por “profundas mudanças”, com forte presença do Estado. Nos oito meses de existência da secretaria, afirma o texto, teriam sido realizados 400 mil atendimentos médicos.
A nota também informa que foram adotadas medidas para liberar do sistema os presos que “não precisam estar encarcerados”; que os detentos recebem 4 refeições por dia; que intensificou programas de educação e qualificação profissional; e que os controles sobre as visitas visam garantir a “organização, limpeza e a liberdade” dos familiares, “sem passar por extorsões do crime organizado ou até mesmo serem assediados e violentados por outros internos”
Desde a adoção de tais procedimentos, conclui o texto, “não se verificou mais rebeliões ou fugas nessas unidades”. A nota diz ainda que “práticas de tortura ou de tratamentos cruéis, desumanos e degradantes não integram a pauta de mudanças no sistema prisional cearense”.
A secretaria também informa que instituições representativas como OAB, Ministério Público, Defensoria Pública e entidades de direitos humanos tem suas prerrogativas respeitadas, com acesso garantido nas unidades prisionais, sendo que “as denúncias são encaminhadas aos setores e órgãos para o correto fluxo de esclarecimentos. Algumas delas são encaminhadas para a Corregedoria para adoção de medidas.”
Perseguição
No dia 3 de setembro, o Conselho Penitenciário do Estado do Ceará (Copen), uma das entidades que denunciam as violações, divulgou nota criticando intervenção da SAP com o objetivo de inviabilizar o funcionamento do Conselho.
Servidores foram realocados em outros locais, o acesso ao Sistema Penitenciário (Sispen) foi cortado, a estrutura física onde funcionava o órgão foi desmontada e documentos foram encaixotados. A diretoria do Copen, criado em 1927 e composta por diversas instituições, como a Ordem dos Advogados do Brasil do Ceará (OAB-CE) e a Pastoral Carcerária estadual, não foi notificada em nenhum momento.
Cláudio Justa, integrante e ex-presidente do órgão, classifica a ação da SAP como uma retaliação.
“O Copen está sendo desmontado porque tem sido uma resistência no dizer que o aparente sucesso dos números, como redução dos incidentes, ocorrências de rebelião, entrada de celulares, comunicação entre lideranças, tudo isso está sendo operacionalizado dentro de uma lógica de muita violência. O Estado está operando na exceção e isso não pode ser feito”, enfatiza.
Ele adiciona ainda que ao minimizar a capacidade fiscalizatória da sociedade civil, se cria um ambiente propício para toda ordem de violação de direitos.
“Foi um ato de violação de prerrogativas, por mais que o Copen esteja vinculado à secretaria, não tem subordinação administrativa. Se quisessem algum documento ou se quisessem remover algum servidor, ou mesmo fechar a sala, teria que pedir oficialmente à presidente do Conselho. É o único secretário que ousou fazer isso nos 90 anos de existência do Copen”, critica Justa.
Por sua vez, a SAP informa que remanejou duas funcionárias terceirizadas para outros setores da Secretaria que necessitam de um maior suporte operacional no seu cotidiano.
“A medida gerencial de remanejamento é prática administrativa, em alinhamento com o Decreto de contenção de despesas do início do ano para um melhor aproveitamento dos seus quadros existentes. A SAP também esclarece que manterá um funcionário disponível em dias de reunião e que o espaço físico disponibilizado ao Copen não sofreu alterações, e o uso de uma sala administrativa e a sala de reuniões permanecem na sua normalidade pelo Conselho”, diz a secretaria.