A Pastoral Carcerária, em parceria com o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM) e a Plataforma Brasileira de Políticas de Drogas produziu uma série de entrevistas e vídeos com Cristiano Maronna, secretário executivo da Plataforma, para discutir e ampliar o debate sobre um dos pontos da Agenda Nacional Pelo Desencarceramento: o combate à criminalização do uso e comércio de drogas.
Nessa primeira parte, Cristiano avalia os 11 anos da lei de guerra às drogas no Brasil e os impactos que ela causou no aumento da violência policial e do encarceramento em massa no país.
“O sistema prisional brasileiro vive uma situação de sistemática violação de direitos humanos, há a tortura sistemática, eles são campos de concentração onde a tortura é a regra. Qualquer avaliação honesta que se faça sobre a política de drogas global brasileira é que ela não vem funcionando e gera custos constitucionais e sociais os mais graves possíveis”.
Abaixo, você confere a entrevista completa:
Quais os principais impactos da atual política de guerras às drogas? Passados 11 anos, qual o impacto da lei de guerra às drogas?
O proibicionismo, que é esse modelo internacional de absoluta restrição de produção, comercialização, distribuição e acesso tem pouco mais de 100 anos. O balanço que podemos fazer, tanto da guerra às drogas que começou há 100 anos e a lei de drogas no Brasil de 11 anos, é de um absoluto fracasso. O que percebemos é que as drogas ilegais, apesar de proibidas, circulam de forma praticamente livre.
Quem deseja consegue acesso à droga e usa de forma livre, o que desde logo nos permite afirmar que é uma proibição inútil. Porque apesar de proibidas, na prática elas estão liberadas; as drogas ilegais nunca foram tão acessíveis, abundantes, baratas e potentes como hoje. Isso mostra que não faz sentido existir a proibição.
Em regiões como a América Latina, especialmente Brasil, Colômbia e México, a guerra às drogas, além de não impedir elas circularem, gera danos muito mais graves do que o excesso de certas drogas.
A guerra às drogas é um vetor de violência nesses países. No Brasil nós temos 60 mil mortes violentas por ano, o índice de esclarecimento dessas mortes é baixíssimo, pois o sistema de justiça criminal simplesmente não dá conta de resolver esses casos que ocorrem por conta de uma alta letalidade policial.
O Ministério Público, que tem uma atribuição constitucional de realizar o controle externo da polícia, não faz isso. Temos uma das polícias mais corruptas do mundo, que é a polícia civil, e uma das mais letais, que é a militar. E um MP que não toma providências para que esse estado de coisas se altere.
Papel do Judiciário
O judiciário, que deveria punir esse tipo de conduta e impedir essas 60 mil mortes, também não faz a sua parte. Essa omissão representa uma espécie de carta branca. Nos crimes de maio de 2006, quando centenas de pessoas morreram em alguns dias como retaliação a iniciativas que culminaram com a morte violenta de policiais, nós tivemos um grupo de promotores da justiça criminal em São Paulo que assinou um manifesto em apoio à PM.
Então quando a gente investiga a postura das instituições responsáveis por reprimir esse tipo de violência, a gente percebe que a omissão e a negligência dessas instituições explicam esse resultado na prática.
De um país que é campeão mundial de violência, sendo que não há uma guerra declarada aqui: temos uma guerra muito particular, e o fato é que essa violência é tributada da guerra às drogas.
Quando vemos chacinas em programas policialescos, aparece um policial dizendo que “eram suspeitos de tráfico de drogas”. Então o suspeito de tráfico de drogas é alguém indigno de vida.
A violência estrutura a polícia. Além da violência temos a corrupção. Não haveria tráfico de drogas se não houvesse envolvimento direto com altos escalões da administração pública, especialmente na sua cúpula.
Falamos muito da polícia, e é evidente que há corrupção, até porque ela está ali no contato direto, mas a corrupção não é restrita a ela. Os beneficiários do lucro do tráfico de drogas não são os pretos, pobres e favelados que ficam de havaianas e bermudas no morro com arma de alto calibre. São os bancos, o sistema financeiro, os grandes atores que se beneficiam do tráfico e que permanecem impunes.
Encarceramento em massa
Como consequência dessa aplicação enviesada da lei, temos o encarceramento em massa. Muitas pessoas que são meros usuários são tratadas como traficantes. Os juízes brasileiros têm uma espécie de tara punitiva, onde só conseguem enxergar a prisão como punição para todo e qualquer crime, pouco importa a gravidade. O tráfico de drogas é um crime muito mal julgado, pois os juízes não individualizam o caso de acordo com as circunstâncias concretas, e se valem na maioria das vezes de um discurso moralizante para justificar uma punição pesada, sob a alegação de que o tráfico é um crime grave, degrada a base da família brasileira, quando a pessoa não tem como se defender desse tipo de alegação moral.
Tem como se defender do fato concreto, que é uma prisão em flagrante que começa com um policial em patrulhamento de rotina, e que o policial, sem identificar qualquer indício de tráfico depõe que a pessoa queria vender, e isso é usado como fundamento para a condenação pelos juízes. Um sistema judicial que é uma máquina de moer carne, funciona de forma inconstitucional, que ignora a constituição e o código do processo penal produz superencarceramento, que o Brasil é a quarta maior população prisional do mundo, e o tráfico de drogas corresponde a um terço dos internos no sistema prisional, no caso das mulheres quase 70%.
E pra finalizar, ocorre o fortalecimento do crime organizado. Quanto mais encarceramos, mais o crime organizado se fortalece. Esse é um ciclo que não vai ser interrompido até que essa política criminal seja alterada. O sistema prisional brasileiro vive uma situação de sistemática violação de direitos humanos, há a tortura sistemática, eles são campos de concentração onde a tortura é a regra. Qualquer avaliação honesta que se faça sobre a política de drogas global brasileira é que ela não vem funcionando e gera custos constitucionais e sociais os mais graves possíveis.