Passados pouco mais de dois meses da anulação do júri no caso do massacre do Carandiru, tudo segue como antes no mundo jurídico brasileiro. Para além da absurda alegação do desembargador Ivan Sartori de que os policiais teriam agido em legítima defesa no episódio, o caso é, ainda, um grande símbolo da falta de controle popular e do exagerado corporativismo que cerca as instituições do país.
Ao olhar atentamente a atuação do Judiciário nesse processo, especialmente a do desembargador relator, tem-se, em sua decisão, uma série de afirmações absurdas que não condizem com o caráter de um dos três Poderes que constituem um Estado Democrático de Direito. Em certo trecho, o desembargador defende que os policiais envolvidos no massacre agiram corretamente ao ocultarem suas identificações, já que “podem tê-lo feito para preservar suas próprias vidas”, ignorando a possibilidade de que a prática, na verdade, tenha sido usada para ocultar eventuais autorias de crimes, algo que tem sido comum desde o início de uma onda de manifestações populares desde 2013.
Além disso, não só o relator do processo, mas também o desembargador Camilo Léllis fizeram menção ao fato de que os projéteis retirados dos corpos das vítimas sumiram após algum tempo, sendo impossível realizar exame pericial essencial para a individualização da conduta dos policiais envolvidos, o que serviu de fundamento para a anulação do júri que os havia condenado.
É bem verdade que, enquanto os projéteis ainda não haviam sumido, faltou boa vontade do Estado de São Paulo para adquirir o equipamento necessário para a produção de provas. Mas, independentemente disso, o simples sumiço dessas balas já deveria ser o bastante para causar um escândalo no Judiciário e uma grande mobilização para a apuração do ocorrido, o que não aconteceu.
Fato é que o Poder Judiciário se constitui de tal maneira que consegue blindar-se de qualquer pressão popular externa. A começar pela sua organização, que deve ser estruturada de acordo com as regras determinadas em Lei Complementar criada pelo próprio STF. E o Novo Estatuto da Magistratura, que ainda é confeccionado no Supremo e deve, em breve, substituir a antiga LOMAN (Lei Orgânica da Magistratura Nacional), não deve causar grande mudança no Judiciário quando o assunto é democratização e participação popular.
De acordo com a minuta desse novo Estatuto, cargos de direção nos tribunais continuarão a ser eleitos de forma secreta e interna, incluindo o de Corregedor, responsável pelo controle dos membros da instituição. Da mesma forma, as Ouvidorias judiciais continuarão a ser ocupadas por magistrados, vetando qualquer participação popular mais incisiva no Judiciário.
Além disso, o Estatuto, criado pelo próprio Judiciário, deve mais do que dobrar as prerrogativas dos magistrados, que hoje são 5, passando para 11. Na questão remuneratória, o Estatuto também é generoso, ressuscitando a gratificação por tempo de serviço e trazendo 21 tipos de verbas indenizatórias, entre elas, o malfadado auxílio moradia ou, ainda, a indenização por serviço de bagagem, além de outros benefícios.
Quando a questão é a responsabilização dos magistrados por descumprimento de deveres, porém, o Novo Estatuto deve se mostrar um pouco mais conservador. De acordo com a minuta, por exemplo, o vazamento de informações sigilosas ou a nomeação de parentes para cargos de confiança não devem receber a punição máxima de perda do cargo para os magistrados. Desse modo, devem continuar ocorrendo casos como o da juíza do Pará que prendeu uma mulher jovem em uma cela masculina, deixando-a vulnerável a todo tipo de tortura, mas, como punição, recebeu apenas uma suspensão por dois anos sem deixar de receber salários.
Mas não são apenas os tribunais que carecem de maior controle popular. Voltando ao caso do massacre do Carandiru, em seu voto, o desembargador Sartori ressuscitou fala do então Procurador de Justiça na época do crime, que buscou justificar os assassinatos pelo fato de o “pavilhão estar cheio de assaltantes e assassinos perigosos que protegiam facções”. Aliás, o mesmo Procurador entendeu que era possível adiar a perícia de confronto balístico, ainda que esta fosse essencial para se chegar a verdade do ocorrido. Porém, após um tempo, os projéteis sumiram, impossibilitando de vez que essa prova fosse produzida. Fato é que, em qualquer momento, a atuação do Ministério Público ficou sujeita ao controle dos cidadãos, muito embora esta seja a instituição que teoricamente defende os interesses do povo.
Por fim, a Polícia Militar segue o mesmo caminho. Com uma estrutura militarizada que nasceu da lógica de controle das massas utilizada pela Ditadura, os números problemáticos que cercam a PM no país não param de crescer. Segundo dados oficiais analisados no 10º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, entre 2014 e 2015, cerca de 6.500 pessoas foram mortas pela polícia, no Brasil, sendo que a Polícia Militar foi responsável pela grande maioria delas. No mesmo período, 680 policiais militares foram mortos em confronto.
Esses números, que mais se assemelham aos de um país em guerra, são fruto de uma política de segurança pública que não dialoga, muito menos abre espaço para que o cidadão participe ativamente das decisões e diretrizes políticas brasileiras. Tem-se, na verdade, uma polícia que funciona como um mecanismo de controle das massas através do monopólio da violência, o que fica mais evidente quando se observa o papel desta instituição na repressão a manifestações populares legítimas.
Nestas três instituições citadas, fica evidente que boa parte de seus problemas de atuação são fruto da falta de participação popular em suas administrações. Se o país realmente tem como objetivo a construção de um Estado Democrático de Direito, é necessário que essas instituições essenciais criem mecanismos de participação ativa dos cidadãos. Nada mais justo para um Ministério Público criado para defender os interesses do povo. Necessária, ainda, a desmilitarização das polícias, construindo-se, finalmente, polícias comunitárias que dialoguem com o cidadão comum. Por fim, vale lembrar que, dentre os três poderes do Estado brasileiro, o Judiciário é o único que não se submete ao voto popular para a escolha de seus membros. Talvez por isso mesmo seja aquele que mais deve reformular sua estrutura, a fim de finalmente democratizar a Justiça no país.
Almir Valente Felitte, advogado e agente da Pastoral Carcerária
Fontes:
Votos dos desembargadores:
http://d2f17dr7ourrh3.cloudfront.net/wp-content/uploads/2016/09/Voto-relator-Sartori.pdf
http://publicador.jota.info/wp-content/uploads/2016/10/voto-camilo-l%C3%A9llis.pdf
10º Anuário Brasileiro de Segurança Pública:
http://www.forumseguranca.org.br/produtos/anuario-brasileiro-de-seguranca-publica/10o-anuario-brasileiro-de-seguranca-publica
Minuta de Anteprojeto do Novo Estatuto da Magistratura:
http://s.conjur.com.br/dl/estatuto-magistratura-juizes-loman-stf.pdf