Privação de liberdade de usuários de crack é alvo de missão da ONU no Brasil

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Começou em 18 de março a visita oficial de dez dias ao Brasil realizada por dois especialistas internacionais que integram o Grupo de Trabalho sobre Detenção Arbitrária do Alto-Comissariado de Direitos Humanos da ONU. Apesar do histórico brasileiro em termos de privação ilegal da liberdade, esta é a primeira vez que o tema será alvo de uma inspeção oficial das Nações Unidas.

Além dos aguardados relatos sobre presos em situação irregular, superlotação das carceragens e falta de estrutura jurídica de apoio, os especialistas Roberto Garretón, chileno, e Vladimir Tochilovsky, ucraniano, terão contato com a recente realidade das internações compulsórias ou involuntárias de usuários de drogas, o crack em particular, em algumas cidades brasileiras.
“É muito importante que o GT da ONU possa analisar o quanto essa política governamental de enfrentamento às drogas levada a cabo hoje representa em termos de aumento do quadro de detenção arbitrária e privação de liberdade no Brasil. Consideramos importante que eles possam se posicionar publicamente em relação a essas detenções arbitrárias feitas em nome da política de combate às drogas, ou seja, o recolhimento e a internação forçada da população em situação de rua que faz uso de drogas. Isso contraria todas as políticas públicas de saúde, saúde mental e assistência social que a gente tem no país”, diz Isabel Lima, da organização Justiça Global.
Para o diretor-adjunto da organização Conectas, Marcos Fuchs, um problema ao qual pouco se dá atenção no país é a mistura de usuários de crack com outros tipos de presos, prática comum em vários pontos do país. “O crack é um problema de saúde pública que afeta todas as grandes capitais do Brasil e já as cidades do interior. Você não pode tratar o usuário da droga como delinquente e o colocar dentro de um CDP (Centro de Detenção Provisória). Isso precisa passar por saúde pública, por um acompanhamento psiquiátrico, por um laudo, antes que se veja se existe uma casa de saúde ou um abrigo psiquiátrico para receber esse cidadão”, diz.
No início deste mês, a Justiça Global, a Conectas e outras cinco organizações da sociedade civil brasileira (Associação para a Reforma Prisional, Instituto de Defesa do Direito de Defesa, Instituto Sou da Paz, Instituto Terra Trabalho Cidadania e Pastoral Carcerária) denunciaram no Conselho de Direitos Humanos da ONU, em Genebra (Suíça), que 35% da população carcerária atual do país – o equivalente a 191 mil pessoas – é composta por presos provisórios.
“Será interessantíssimo os especialistas da ONU verem de perto o quanto a situação carcerária brasileira é medieval e arcaica, como diz o nosso ministro da Justiça. Verem que no estado de São Paulo cerca de 40% do total de presos são provisórios, e não haverá CDP nenhum que vá conseguir receber esses presos”, diz Fuchs, antes de acrescentar que “não há infraestrutura para acolher os presos provisórios, e isso se estende para todo o Brasil, para todo o território nacional”.
Audiência de custódia
Assessor jurídico da Pastoral Carcerária da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), José de Jesus Filho afirma que a entidade apresentará à missão da ONU “duas demandas importantes”. A primeira é a necessidade de criação de um mecanismo nacional de prevenção à tortura: “O projeto está parado no Congresso, que não o aprova”, diz José. A outra demanda será sobre a necessidade da aprovação da lei de audiência de custódia: “Uma vez que vai exigir que em menos de 24 horas toda pessoa presa seja apresentada ao juiz”, diz o integrante da Pastoral Carcerária.
Fuchs também defende que o tema seja discutido durante a visita dos especialistas. “A aprovação do projeto de lei de audiência de custódia é recomendável. É a forma de se ter o contraditório, de se exercer o duplo grau de direito e jurisdição, tendo o preso a oportunidade de conversar com o juiz e com o promotor, com o defensor ao seu lado. Enfim, sendo apresentado para dar a versão dele, e não simplesmente ser lavrado o flagrante na delegacia, onde ninguém sabe de que forma isso foi feito ou se houve alguma chance de o preso ser ouvido e encaminhado ao juiz para decretar prisão. É fundamental essa audiência de custódia e essa apresentação do preso ao juiz em 24 horas”, diz.
Isabel Lima cita como outro problema a superlotação das cadeias por presos que, em muitos casos, não deveriam estar ali. “Um exemplo é o Rio de Janeiro, uma situação muito grave que a gente espera que eles [os especialistas da ONU] possam ter contato. No estado praticamente inexiste a semiliberdade, os presos ficam em regime fechado. Tem a situação do elevado número de presos provisórios também, que aguardam indefinidamente o andamento da sua situação processual, além de presos com penas vencidas”, diz.
Segundo a integrante da Justiça Global, também concorre para o agravamento dessa situação a falta de assistência jurídica adequada: “Aí, a gente fala não só da estrutura da defensoria pública, que sempre precisará de investimentos, mas da própria falta de estrutura do Tribunal de Justiça, que só tem uma Vara de Execução Penal no Rio de Janeiro. Isso é muito grave e tem um grande impacto sobre o agravamento das detenções arbitrárias no estado”, diz.
Agenda
A agenda dos dois especialistas da ONU em sua visita ao Brasil incluirá um encontro com a sociedade civil e os movimentos sociais em Brasília. Não haverá encontro em cada estado, mas todas as questões regionais serão abordadas nesse encontro nacional.
Além dos dois integrantes do GT sobre Detenção Arbitrária do Alto-Comissariado de Direitos Humanos, fazem parte da comitiva funcionários da ONU. O grupo pretende inspecionar presídios, delegacias, centros de detenção e instituições psiquiátricas nas cidades de São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília, Fortaleza e Campo Grande. Uma coletiva à imprensa será dada por Garretón e Tochilovsky no dia 28 de março, último dia da visita oficial, também em Brasília.
Para os ativistas, trata-se de uma oportunidade de exercer pressão e dar visibilidade aos problemas do país: “A expectativa é que, com a presença do grupo, a gente possa impulsionar o governo brasileiro a tomar algumas medidas para solucionar o problema da detenção arbitrária e da ilegalidade das detenções no país”, diz José de Jesus Filho.
Marcos Fuchs acompanha o raciocínio: “Acho que essa é uma missão que vai incomodar o governo brasileiro e que provavelmente verá coisas terríveis. Elas constarão de um relatório da ONU e isso é mais um constrangimento para que o Brasil tome as medidas necessárias, porque o Estado não pode continuar tratando seus presos dessa forma”, diz.
“Nossa expectativa é que eles possam dar visibilidade à gravidade da situação das detenções arbitrárias e das condições de privação de liberdade no Brasil. Que a ONU, por ser um órgão externo, possa ter impacto sobre as ações do poder público para solucionar e sanar essa questão e por fim às condições de privação de liberdade que eles irão encontrar”, diz Isabel Lima.
Fonte: Rede Brasil Atual – Maurício Thuswohl – postado em 19 de março de 2013

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