Perita do MNPCT renuncia e aponta burocracia e proximidade do governo como problemas do órgão

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Thais Duarte, uma das peritas do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) decidiu renunciar do órgão. Em carta na qual explica os motivos da sua saída, ela cita principalmente a burocracia do órgão e a aproximação do Mecanismo com o governo, o que acaba impedindo uma visão e atuação mais críticas em relação à tortura:
“A meu ver, o legalismo, a burocracia, bem como a baixa capacidade técnica e critica por parte de um grupo de peritos diminuíam o órgão a uma condição de um interlocutor e sistematizador de informações limitado, não trazendo mudanças efetivas para a realidade. (…) No cotidiano dos trabalhos, o tom dado pela maioria dos peritos é o de que o órgão deveria atuar com base no ‘diálogo’, não necessariamente no enfrentamento, pois entendem que o Mecanismo Nacional é um órgão de governo. (…) Avalio que uma aproximação acrítica do poder público distancia o Mecanismo Nacional das pautas da sociedade civil, ligando-o a órgãos que, na prática, podem fornecer bases para a violação em Direitos Humanos.

Há exatamente um ano, a Pastoral Carcerário também deixou de integrar o Mecanismo, por motivos similares: “O que deveria ser um sistema baseado na absoluta autonomia dos seus elementos, e preponderância da sociedade civil na condução dos trabalhos, eis que o Estado brasileiro era e continua sendo o maior dos torturadores, transformou-se em mais um aparelho burocrático, sob permanente tutela governamental”.
Leia a carta completa de Thais Duarte:
Prezadas(os) companheiras(os),
atuei como perita do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) entre março de 2015 e julho de 2017, sendo que meu mandato terminaria ao final do primeiro trimestre de 2019. Decidi me exonerar antes do previsto para me lançar em novas frentes, tendo em vista os motivos expostos nessa carta.
Em certa medida, a escolha de sair do Mecanismo Nacional foi bastante custosa. Ajudar a construir uma política sólida de prevenção à tortura, em um país onde a violação em Direitos Humanos faz parte das rotinas diárias de espaços de privação de liberdade, se constituía – e ainda se constitui – como a concretização de um sonho pessoal.
No entanto, as instabilidades políticas do Brasil, reforçadas pelo golpe institucional em andamento, o processo de desmonte das ações em Direitos Humanos e, sobretudo, as disputas relacionadas as diferentes visões de mundo dentro do Mecanismo Nacional dificultavam de sobremaneira a construção de um órgão autônomo e independente, gerando, ao longo do tempo, um desgaste significativo no andamento dos trabalhos.
A meu ver, o legalismo, a burocracia, bem como a baixa capacidade técnica e critica por parte de um grupo de peritos diminuíam o órgão a uma condição de um interlocutor e sistematizador de informações limitado, não trazendo mudanças efetivas para a realidade. A única manifestação pública feita pelo MNPCT ao longo de pouco mais de dois anos de existência se referiu a uma nota contrária a redução da maioridade penal – posicionamento bastante pacífico e esperado de um organismo de prevenção à tortura. Já para outras pautas que exigem um maior nível de amadurecimento político e medidas mais ousadas de resistência, o Mecanismo Nacional se manteve inerte. Como exemplos, dentre outras questões, não houve posicionamentos sólidos sobre o lastimável Plano Nacional de Segurança Pública, sobre a adoção de estratégias para o desencarceramento e sobre a guerra às drogas. Ainda, o Mecanismo Nacional não se posicionou publicamente sobre a demora da nomeação dos membros do Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (CNPCT), com vistas a evitar um tensionamento com o governo federal.
Adicionalmente, apesar de eu e alguns companheiros acreditarmos que o contato com as pessoas privadas de liberdade em celas e alojamentos deveria ser um prática basilar de um organismo como o MNPCT, perdemos diversas tardes de trabalho discutindo com os demais peritos a adoção ou não desse procedimento. O resultado desse embate foi a construção de uma resolução que, entre outros aspectos, estipula medidas pouco precisas sobre o tema, ficando basicamente a critério do perito como proceder. Ou seja, a entrada em cela e alojamento pode ser até mesmo uma prática excepcional, não a regra, durante uma visita, já que não é uma diretriz central do órgão. De todo modo, caso uma minoria – da qual eu fazia parte – não tivesse feito resistência, essa resolução poderia ter saído com um teor muito mais conservador.
No cotidiano dos trabalhos, o tom dado pela maioria dos peritos é o de que o órgão deveria atuar com base no “diálogo”, não necessariamente no enfrentamento, pois entendem que o Mecanismo Nacional é um órgão de governo. Desse modo, deve ser submetido a uma interlocução mais harmoniosa com o executivo federal. De fato, o Protocolo Facultativo das Nações Unidas Contra a Tortura indica o diálogo com alteridade como componente fundamental das atividades de Mecanismos Preventivos Nacionais, de modo que eu e outros companheiros buscávamos adotá-lo nas visitas aos estados e nas articulações com atores estratégicos federais. Por outro lado, sempre tivemos o cuidado em não misturar o diálogo com o submetimento institucional, de modo que, em alguns momentos, ficávamos alijados de determinadas decisões do MNPCT. Avalio que uma aproximação acrítica do poder público distancia o Mecanismo Nacional das pautas da sociedade civil, ligando-o a órgãos que, na prática, podem fornecer bases para a violação em Direitos Humanos.
Em suma, apenas mencionei algumas poucas situações que considero emblemáticas na minha experiência no MNPCT, apesar de poder indicar outras tantas que ajudaram a ensejar a minha saída do órgão. Buscarei agora em outras trincheiras modos mais efetivos para prevenir a tortura no Brasil. Em contrapartida, reitero a minha completa disposição em continuar o diálogo com o Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, especialmente, com o segmento da sociedade civil, para a construção de uma sociedade mais justa, igualitária e sem tortura.
Desejo aos peritos que ficam, especialmente, aqueles com quem compartilho uma visão de mundo, força para seguirem resistindo, dedicação e sorte. Gostaria também de agradecer aos membros do Comitê Nacional de Prevenção e Combate a Tortura pela parceria e pela confiança nos últimos dois anos. Anseio profundamente que ambos os órgãos, em conjunto, constituam e fortaleçam permanentemente uma política de prevenção à tortura autônoma, capaz de transformar efetivamente a vida das pessoas privadas de liberdade.
Atenciosamente,
Thais Duarte

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