Papa Francisco: “Endurecer as penas, com frequência, não leva à diminuição da delinquência”

 Em A Igreja diz não à Prisão, Notícias

Em carta à Associação Latino-americana de Direito Penal e Criminologia, o papa Francisco se posicionou contra o aumento dos castigos impostos a quem comete crimes. A comunicação foi direcionada ao juiz Eugenio Raúl Zaffaroni, secretario executivo da Associação. O Pontífice também critica a cobertura midiática para os casos policiais e pede que haja trabalhos para a inclusão social dos deliquentes e para a reparação das vítimas.
De acordo com o Papa, endurecer as penas pode “gerar graves problemas para as sociedades, como são as prisões superlotadas ou presos detidos sem condenação”. Abaixo a íntegra da carta em tradução livre.

Carta de Francisco a Zaffaroni: “Endurecer as penas com frequência não leva à diminuição da delinquência”
Senhor Presidente e Senhor  Secretário Executivo:
Com estas letras, desejo fazer chegar minhas saudações a todos os participantes do XIX Congresso Internacional da Associação Internacional de Direito Penal e do III Congresso da Associação Latino-americano de Direito Penal e Criminologia, dos importantes foros que permitem a profissionais da justiça penal se reunirem, compartilhar pontos de vista, preocupações, aprofundar temas comuns e atender à problemáticas regionais, com suas particularidades sociais, políticas e econômicas. Junto com os melhores desejos para que seus trabalhos obtenham abundantes frutos, quero expressar meu agradecimento pessoal e também o de todos os homens de boa vontade, por seu serviço a sociedade e sua contribuição ao desenvolvimento de uma justiça que respeite a dignidade e os direitos da pessoa humana, sem descriminar, e cuide-se como se deve às minorias.

Bem sabem os senhores que o Direito penal requer um enfoque multidisciplinar, que trate de integrar e harmonizar todos os aspectos que confluam na realização de um ato plenamente humano, livre, consciente e responsável. Também a Igreja gostaria de dizer uma palavra como parte de sua missão evangelizadora, e em fidelidade a Cristo, que veio “anunciar a liberdade aos cativos” (Lc, 4:18). Por isso, animo-me a compartilhar com os senhores algumas ideias que levo na alma e que formam parte do tesouro da Escritura e da experiência milenária do Povo de Deus.

Desde os primeiros tempos cristãos, os discípulos de Jesus se esforçaram por fazer frente à fragilidade do coração humano, tantas vezes débil. De diversas maneiras e com variadas iniciativas, acompanharam e contiveram a quem sucumbia com o peso do pecado e do mal. Apesar das mudanças históricas, foram constantes três elementos: a satisfação ou reparação do dano causado, a confissão, por onde o homem expressa sua conversão interior e a contrição para chegar ao encontro com o amor misericordioso e sanador de Deus.
1. A Satisfação – O Senhor foi ensinando, pouco a pouco, a seu povo que há uma assimetria necessária entre o delito e a pena, que um olho ou um dente quebrado não se remenda quebrando outro. Trata-se de fazer justiça à vítima, não de ajustiçar ao agressor.

Um modelo bíblico de satisfação pode ser o Bom Samaritano, sem pensar em perseguir ao culpado para que assuma as consequências de seu ato, atende a quem ficou ferido e atirado na estrada e o ajuda em todas as suas necessidades (cf. Lc10, 25-37).

Em nossas sociedades, temos a tendência a pensar que os delitos se resolvem quando se encarcera e condena a um delinquente, deixando de lado os danos cometidos ou sem prestar suficiente atenção à situação em que ficam as vítimas. Porém, seria um erro identificar a reparação somente com o castigo, confundir a justiça com a vingança, o que somente contribuiria a incrementar a violência, ainda que esteja institucionalizada. A experiência nos diz que o aumento e endurecimento das penas com frequência não resolvem os problemas sociais nem leva à diminuição dos índices de delinquência. E além de ocasionar graves problemas para as sociedades, como os cárceres superlotados ou presos detidos sem estarem condenados… Em quantas ocasiões, temos visto ao réu cumprir sua pena objetivamente, cumprindo a condena, porém, sem mudar interiormente nem curar-se das feridas de seu coração            .

A esse respeito, os meios de comunicação, em seu legítimo exercício da liberdade de imprensa, fazem um papel muito importante e têm uma grande responsabilidade: deles depende informar retamente e não contribuir para criar alarme e pânico social quando dão noticias de fatos delitivos. Está em jogo a vida e a dignidade das pessoas que não podem se converterem em casos publicitários, diariamente insulsos e mórbidos, “condenando aos possíveis culpados” ao descrédito social antes de serem julgados ou forçando as vítimas, com fins sensacionalistas, a reviver publicamente  a dor sofrida.

2. Confissão é a atitude de quem reconhece e lamenta sua culpa. Se ao delinquente não se ajuda suficientemente, não se lhe oferece uma oportunidade para que possa converter-se termina sendo vítima do sistema. É necessário fazer justiça, porém a verdadeira justiça não se contenta com castigar simplesmente o culpado, há que avançar e fazer o possível por corrigir, melhorar e educar ao homem para que amadureça em todas suas vertentes, de tudo que não desanime, enfrente ao dano causado e consiga reconsiderar sua vida sem ficar aplastado pelo peso de suas misérias.

Um modelo bíblico de confissão é o bom ladrão, ao que Jesus promete o paraíso porque foi capaz de reconhecer sua falta; “nós estamos sendo punidos com justiça, porque estamos recebendo o que os nossos atos merecem, mas este homem não cometeu nenhum mal” (Lc 23,41).

Todos somos pecadores; Cristo é o único justo. Também nós corremos o risco de nos deixar levar em algum momento pelo pecado, o mal, a tentação. Em todas as pessoas convive a capacidade de fazer muito bem com a possibilidade de causar muito mal, ainda que a gente queira evitar (cf.Rm 7, 18-19). E temos que nos perguntar o porquê de que alguns caem e outros não, sendo de sua mesma condição.

Não poucas vezes, a delinquência tem suas raízes nas desigualdades econômicas e sociais, nas redes da corrupção e o crime organizado, que buscam cúmplices entre os mais poderosos e vítimas entre os mais vulneráveis, para prevenir este flagelo, não basta ter leis justas é necessário formar pessoas responsáveis e capazes e colocá-las em ação.

Uma sociedade que se rege somente pelas regras do mercado e cria falsas expectativas e necessidades supérfluas, descarta aos que não estão à altura e impede que os lentos, os débeis, os menos dotados  que se abram caminho na vida(cf. Evangelli Gaudium 209)

3- A Contrição é o pórtico do arrependimento, é essa senda privilegiada que te leva ao coração de Deus, que nos acolhe, e nos oferece outra oportunidade, sempre que nos abramos à verdade da penitência e nos deixemos transformar por sua misericórdia. Dela nos fala a Escritura Santa quando se refere à atitude do Bom Pastor, que deixa as noventa e nove ovelhas que não requerem de seus cuidados e sai para procurar àquela que anda errante e perdida (Lc15, 4-7), ou a do Pai que recebe ao seu filho menor sem recriminações e com o perdão (Lc 15, 11-32). Também é significativo o episódio da mulher adúltera, a que Jesus lhe diz: Vai-te e não peque mais “(João 8, 11b). Alusivo, a si mesmo, ao Pai comum, que faz sair o sol sobre os maus e bons, e chover sobre justos e injustos (cf.Mt 5, 45) Jesus convida a seus discípulos a serem misericordiosos, fazerem o bem a quem lhe faz o mal, a rezar pelos inimigos, oferecer a outra face, a não guardar rancor…

A atitude de Deus, que recompensa ao homem pecador oferecendo seu perdão, apresenta-se, assim, como uma justiça superior, ao mesmo tempo equânime e compassiva, sem que tenha contradição entre esses dois aspectos. O perdão, com efeito, não elimina nem diminuí a exigência da retificação, própria da justiça, nem prescinde de uma necessidade de conversão pessoal, se não que vá mais além, buscando restaurar as relações e reintegrar as pessoas na sociedade. Aqui me parece que se encontra um grande desafio, que entre todos devemos realizar, para que as medidas que se adotem contra o mal não se contentem com reprimir, dissuadir e separar aos que causaram, se não que os ajudem a recapacitar, a transitar pelas sendas do bem, a serem pessoas autênticas que longe de suas misérias, tornem-se elas mesmas misericordiosas.

Por isso, a Igreja sugere uma justiça que seja humanizadora, genuinamente reconciliadora, uma justiça que leve o delinquente, através de um caminho educativo e de esforçada penitência, a sua reabilitação e total reinserção na comunidade.

Que importante e lindo seria acolher esse desafio, para que não ficasse esquecido. Que bom que se dessem os passos necessários para o perdão e não ficassem unicamente na esfera privada. Mas que alcançasse uma verdadeira dimensão política e institucional para assim criar relações de convivência harmoniosa. Que bem se obteria se houvesse uma mudança de mentalidade para evitar sofrimentos inúteis, sobre tudo entre os mais indefensos.

Queridos amigos, vão enfrente nesse sentido, pois entendo que aqui reside a diferença entre uma sociedade que inclui e outra que exclui, que não põe no centro a pessoa humana e prescinde dos restos que já não servem.

Despeço-me encomendando ao Senhor Jesus que nos dias de sua vida terrena foi preso e condenado injustamente à morte e se identificou com todos os presos, culpados ou não (“Estive preso e vocês me visitaram”, Mt 25,36). ELE desceu também a essas trevas criadas pelo mal e o pecado do homem para levar ali a luz de uma justiça que dignifica e enaltece para anunciar a Boa Nova da salvação e da conversão. ELE, que foi despojado iniquamente de tudo, conceda-lhes o dom da sabedoria, para que seus diálogos e considerações se vejam recompensadas com o acerto.

Rogo-lhes que rezem por mim, pois o necessito bastante.

Cordialmente,

Papa Francisco

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