Angela Davis: ‘O encarceramento em massa nunca trouxe soluções para conter a violência’

 Em Mulher Encarcerada

Andréa Martinelli
“Em primeiro lugar boa tarde a todos e a todas. É uma honra enorme estar aqui, na Universidade Federal da Bahia, mais uma vez”. Esta é a quarta vez que a professora, ativista e filósofa Angela Davis, 71, vêm à Bahia, e sua sexta visita ao Brasil. “Talvez por isso seja uma vergonha eu não ter aprendido a falar português ainda”, brincou, em coletiva de imprensa nesta terça-feira (25), na reitoria da UFBA (Universidade Federal da Bahia). “Tenho certeza que quando eu aprender, vou descobrir muitas outras coisas positivas”, concluiu.

Davis, além de reiterar o carinho que tem pelo Brasil e por pensadoras brasileiras como Lélia Gonzalez, afirmou que as universidades brasileiras têm muito a ensinar para as norte-americanas, em termos de colocar em prática as ações afirmativas de combate ao racismo como, por exemplo, as cotas raciais; e destacou a importância de um pensamento abolicionista do que ela batiza de “sistema industrial carcerário”, tema que permeia seus estudos desde 1970:
“Se partirmos do pressuposto que o que devemos fazer é simplesmente encarcerar essas pessoas para, então, eliminar a violência de gênero, na verdade, estamos colaborando ativamente na continuidade da reprodução da violência que estamos tentando erradicar”.
Segundo dados do Infopen, a população carcerária brasileira é composta por 94% de homens, mais da metade (55,07%) tem até 29 anos de idade e, ainda, 61,67% é de negros ou pardos, com baixa ou nenhuma escolaridade. 40% do total (quase 250 mil) é de presos provisórios, ou seja, pessoas que se encontram cerceadas em sua liberdade sem terem sido julgadas.
Grande crítica do sistema judicial no mundo, Davis, ao longo dos anos, tem realizado discussões e estudos sobre o chamado “abolicionismo penal”, por entender que existe uma relação entre encarceramento em massa e escravidão que, na verdade, reforça um “instrumento de perpetuação da violência”, e não o combate a ela.
“Uma pergunta a ser feita pode ser: o quão transformador é o ato de simplesmente mandar um homem que cometeu violência contra mulher para uma instituição que simplesmente reforça e produz ainda mais violência? Ou será que simplesmente essa retribuição vingativa, seria suficiente? Ou nós estamos realmente comprometidos a purgar a sociedade deste tipo de violência?”, questiona.
Ainda segundo o relatório brasileiro, a população prisional brasileira no Sistema Penitenciário em 2014 era 579.781 pessoas, levando em consideração as prisões estaduais e federais. Desse total, 37.380 são mulheres e 542.401, homens. Entre as mulheres, cerca de 50% têm de 18 a 29 anos. A maioria, duas em cada três presas, é negra.
Os dados do Infopen também mostram que, em números absolutos, o Brasil está em quinto lugar na lista dos 20 países com maior população prisional feminina do mundo, atrás dos Estados Unidos (205.400 detentas), da China (103.766) Rússia (53.304) e Tailândia (44.751).
Davis expõe que é igualmente importante se pensar o assunto entrelaçando gênero, raça e classe “dentro e fora dos Estados Unidos”, e pontua:
“Podemos argumentar que, no que diz respeito à punição, o Estado é o agente punitivo para os homens. Mas formas de punição que são consideradas privadas — que nos referimos a elas como violência doméstica — afeta muito mais mulheres do que os homens […]. Isso também nos indica que simplesmente aprisionar homens não acaba com a violência contra as mulheres. Provavelmente só terá o efeito de exacerbar essa violência.”
A visita ao Brasil
Desde os anos 1980 Angela Davis faz constantes visitas ao Brasil. Desta vez, a vinda da ativista, que é referência mundial no enfrentamento antirracista e do pensamento crítico feminista, fez parte do evento “Julho das Pretas”, organizado por coletivos feministas baianos, que promoveu ações durante todo o mês.
Para marcar o dia 25 de Julho, Dia Internacional da Mulher Afro-Latina e Caribenha, ex-presa política ministrou a conferência “Atravessando o tempo e construindo o futuro da luta contra o racismo”. Com mais de 400 alunos e convidados, o salão nobre da reitoria da UFBA atingiu sua capacidade máxima.
O grupo de poesia “Slam das Minas” deu início ao evento e, em seguida, ao lado de lideranças do movimento negro no Brasil e autoridades acadêmicas da Bahia, Davis citou a luta das mulheres negras no Brasil e destacou que as norte-americanas têm muito a aprender com “a movimentação que está acontecendo por aqui”, especialmente sobre luta por direitos e reconhecimento de violências.
Você pode assistir à conferência clicando aqui.
Na década de 70, Angela Davis integrou um braço do grupo Panteras Negras nos Estados Unidos e foi membro do Partido Comunista. Ela foi presa e ficou mundialmente conhecida pela mobilização da campanha “Libertem Angela Davis”, que deu nome a um documentário, dirigido por Shola Lynch. Atualmente, ela é professora emérita do departamento de estudos feministas da Universidade da Califórnia e desenvolve trabalho intenso sobre a questão prisional nos Estados Unidos.
Leia trechos da entrevista coletiva:
Arte x Política
“Como alguém que já esteve envolvido em diversos tipos de ativismos durante décadas, minha percepção é que nós estamos encorajando as novas gerações a utilizar a arte de outra maneira. E qualquer movimento que tenha expectativa de provocar uma mudança duradoura deveria reconhecer a importância da comunicação entre diferentes gerações. Certamente as novas gerações tem muito a aprender com o conhecimento acumulado e a experiência de gerações anteriores e, parece que, ainda mais importante é o fato de que as gerações mais velhas tem muito a aprender com as gerações mais jovens. E, como eu tenho aprendido e visto, esta é a geração que não tem medo. É a juventude que ousa buscar o novo, que utilizar essa imaginação de tal maneira que possamos trilhar caminhos ainda não trilhados.”
O papel da universidade
“Se você me pergunta qual deveria ser o papel da universidade, eu diria que deveria ser exatamente nutrir ou apoiar quem faz a universidade acontecer. E isso levará à liberdade e à justiça para todos nós. Mas vocês sabem que as universidades, geralmente, estão frequentemente associadas às elites e, portanto, tornam-se também uma arena para um espaço de disputa e para a luta contra o racismo — e também uma luta em prol de modos de produção de estudos que nos levem a reconhecer a conexão entre o conhecimento e a liberdade. Mas eu devo dizer que estou muito impressionada com o sistema de educacional brasileiro, do que o norte americano. Visto que temos discutido ações afirmativas durante décadas, com um impacto muito diminuto. E eu me lembro quando começaram os debates em torno de ações afirmativas aqui na Bahia. E hoje, eu vejo consequências concretas. A Universidade Federal do Recôncavo Bahiano nos proporciona uma evidência concreta de que é possível garantir acesso à educação formal para a população que historicamente foi excluida. Isso não significa que os problemas formam resolvidos. Mas eu posso dizer que podemos aprender, nos Estados Unidos, com os exemplos brasileiros e o que é possível alcançar com essas medidas”.
O sistema carcerário industrial
“Como alguém que trabalhou contra esse sistema durante a maior parte de minha vida, de minha trajetória, eu, juntamente com outras pessoas que estão engajadas nessa luta comigo, percebi que este tipo de punição que está associada ao encarceramento, ao aprisionamento, tem mantido ligações muito óbvias com os sistemas de escravização. Essa relação entre o sistema carcerário e a escravidão não é só uma questão de estabelecer analogias. Mas é uma questão de genealogia. Isso não parte do pressuposto daqueles que argumentam que este sistema escravocrata deveria ser mantido como instituição, que deveria ser transformado em uma instituição ‘mais humanizada’. Isso não faz nenhum sentido. Então, nós dizemos que, lutar pela reforma do sistema carcerário é uma forma de manter o racismo e a repressão do encarceramento, do aprisionamento. E, portanto, a abolição é a estratégia que abraçamos. Mas a abolição nos exige a fazer perguntas não somente sobre o sistema de punição, mas também como a sociedade constitui esse sistema de punição. Esse sistema é voltado e tem o objetivo de manter o sistema a partir do qual ele emerge. E essa noção de abolição visa reformar essa sociedade para que não haja mais a necessidade de dar atenção a medidas de repressão. A abolição do sistema carcerário nos convida a pensar a construir uma sociedade onde não haja racismo, sem estruturas heteropatriarcais, sem estruturas capitalistas, onde há educação livre e acesso gratuito ao sistema de saúde. E isso é uma mensagem diretamente colocada para pessoas que se encontram no poder nos Estados Unidos. Portanto, é uma luta para transformar a sociedade. De maneira sucinta, é uma luta abraçada pelo socialismo”.
O encarceramento e as mulheres negras
“É muito importante e necessário pensarmos sobre as circunstâncias dentro do sistema carcerário feminino em uma perspectiva global. Geralmente, é visto que o problema do encarceramento em massa é uma questão referente ao homens. Porque, sim, os homens constituem a vasta maioria daqueles que se encontram encarcerados mundo afora. E isso certamente é verdade. Mas não significa que não podemos adquirir bastante conhecimento sobre esse sistema, se observamos especificamente as circunstâncias que envolvem o sistema carcerário feminino — e as mulheres inseridas nele. Abordagens feministas naquilo que chamamos de sistema carcerário industrial, nos leva a investigar tanto por meio de pesquisas acadêmicas, como por meio do ativismo radical que, sim, há uma conexão entre a violência institucional, por um lado, e a violência individual (ou aquela que acontece em relações íntimas).”
Então, você vê, começamos, a princípio, falando de uma parcela apenas do sistema carcerário. Mas desenvolvemos, a partir daí, percepções mais amplas e significativas dentro desse sistema.
“Podemos argumentar que, no que diz respeito à punição, o Estado é o agente punitivo para os homens. Mas formas de punição que são consideradas privadas — que nos referimos a elas como violência doméstica — afeta muito mais mulheres do que os homens. E, então, isso nos auxilia a refletir sobre o sistema carcerário. Muitas mulheres apontam para o fato de que, desse mundo dos “livres”, elas têm vivenciado a violência sexual também. Quando apenas visitam a prisão, elas são submetidas a revistas constrangedoras e invasivas como revistas vaginais e no reto. Isso também constitui violência sexual. Isso também nos indica que simplesmente aprisionar homens não acaba com a violência contra as mulheres. Provavelmente só terá o efeito de exacerbar essa violência. E esse é um argumento bastante convincente em prol da abolição do sistema carcerário.”
“Quando a gente olha para as condições de pessoas trans encarceradas, principalmente mulheres trans, elas são também alvos do racismo. E, assim, compreendemos o sistema carcerário mais uma vez, de maneira ampla. Observamos também como esse sistema carcerário tem uma característica de gênero. Então, você vê, começamos, a princípio, falando de uma parcela apenas do sistema carcerário. Mas desenvolvemos, a partir daí, percepções mais amplas e significativas dentro desse sistema. E não somente do sistema carcerário como um sistema de punição, mas um aparato do Estado que sustenta percepções ideológicas amplas de raça e de sexismo dentro da sociedade como um todo. E me desculpe pelo tamanho da minha resposta. Mas essa é uma conversa com a qual eu poderia falar durante horas” [risos].
Abolicionismo prisional x feminismo
“É interessante observar novamente que, quando refletimos sobre encarceramento, ou aquilo que chamamos de encarceramento em massa, nós caracterizamos isso como um problema que afeta apenas os homens. Nós falhamos ao reconhecer que além dos grandes números, existem mulheres que estão encarceradas (e eu entendo que aqui no Brasil 2/3 de mulheres que estão encarceradas são negras, eu estou correta?). Além disso, aquelas que são mais afetadas pelas políticas de encarceramento são mulheres, independente de estarem presas. Elas são casadas com esses homens. Eu sei que, nos Estados Unidos, quando vamos às salas de visitas nas prisões, você descobre um número enorme de mulheres negras.
Mas, em contrapartida, as mulheres negras também tem sido protagonistas contra esse sistema que está tão saturado pelo racismo. E eu acho que vocês, que são jovens, neste momento específico da história, tem muita sorte de serem jovens. Vocês estão experimentando a emergência de uma consciência que deveria ter sido desenvolvida há muitas gerações atrás. E este é o papel que as mulheres negras sempre tiveram: lutar contra instituições de repressão e racistas.
Mas, finalmente, estamos reconhecendo que as mulheres têm capacidade de exercer cargos de liderança — e eu utilizo a palavra ‘mulher’ em todas as suas expressões possíveis, incluindo mulheres trans — e que essa liberdade tem algo bastante diferenciado da liderança individual do passado, a liderança individualista carismática — que, nos Estados Unidos, por exemplo, podemos falar de Martin Luther King e Malcom X. Mas, de forma alguma, buscamos desacreditar o papel que ambos tiveram. Afirmar isso é reconhecer que, neste momento, estamos prontas para novos modelos de liderança: formações ou modelos de lideranças feministas, não em um indivíduo, mas em coletivo. E eu estou muito feliz de poder testemunhar o desenvolvimento dessas outras formas no Brasil, nos Estados Unidos e em outras partes do mundo.”
Rafael Braga e os presos políticos do mundo
“Me parece que, por ser uma pessoa que já foi prisioneira política e, reconhecendo que só estou aqui falando com vocês muitas décadas depois do que aconteceu… Eu vejo que a minha liberdade, em parte, só aconteceu, no porque as pessoas se uniram em âmbito global para exigir isso. Esses movimentos para libertar presos políticos deveriam ser continuados.
Rafael Braga e outros prisioneiros políticos aqui no Brasil, em Israel, aqueles que estão aprisionados no continente europeu por estarem engajados na luta contra a islamofobia e o racismo, e também, ainda hoje ainda a existência continuada de presos políticos nos Estados Unidos, como Leonard Peltier, um prisioneiro político de descendência indígena que passou quase quarenta anos encarcerado; Mumia Abu Jamal, que é o prisioneiro politico mais conhecido nos EUA atualmente e também o caso de Assata Shakur, que continua a viver no exílio, em Cuba.”
O abolicionismo x naturalização
“É claro que eu estou ciente que a população carcerária do Brasil é uma das maiores do mundo, apenas ficando atrás de Estados Unidos, China e Rússia. Mas eu também estou ciente de que, assim como no Brasil e outras partes do mundo, a luta contra a violência de gênero tem sido crucial, principalmente, dentro do âmbito dos movimentos feministas.
Geralmente, pressupõe-se que, para que termos uma abordagem abolicionista, necessariamente ela seria uma forma de minimizar a gravidade da violência em um ambiente doméstico — e é um questionamento válido porque, afinal de contas, temos lutado por muitas décadas para garantir que a violência de gênero fosse reconhecida pelo Estado –. Mas, sobre isso, uma questão é a seguinte: nós podemos mensurar a gravidade ou o valor de uma acusação, pela quantidade ou intensidade da punição?
Outra pergunta a ser feita pode ser: o quão transformador é o ato de simplesmente mandar um homem que cometeu violência contra mulher para uma instituição que simplesmente reforça e produz ainda mais violência? Será que simplesmente essa retribuição vingativa, seria suficiente? Ou nós estamos realmente comprometidos a purgar a sociedade deste tipo de violências? O encarceramento nunca resolveu os problemas para os quais pressupõe-se que seriam as respostas. Não há menos roubos ou assaltos em função do encarceramento. Não há menos assassinatos porque as pessoas estão indo para a prisão. Mas um fato é: as pessoas saem da prisão ainda mais violentas do que eram quando entraram.”
Se o Estado utiliza a violência policial para resolver problemas de maneira punitiva, então ele dissemina a mensagem que a violência pode ser uma solução para os problemas domésticos também.
“Então, se nós estamos realmente dedicados a expurgar a violência de gênero de nossas sociedades, nós não estaremos portando, desejosas de encontrar outras formas de cobrar essa responsabilidade? Outras formas de reduzir a violência de gênero? xxx publicou um livro sobre essa questão, que se chama A Justiça Aprisionada: A mulher negra o sistema carcerário e a justiça. Ela argumenta que nós conseguimos ganhar o âmbito mais amplo, mas que perdemos os movimentos sociais.
Porque a medida que abraçamos as soluções do encarceramento com soluções para violência de gênero, é também abraçar processos que levam a uma expansão do número de encarceramentos no mundo. E dessa forma também abrimos mão do nosso dever de pensar outras formas para a erradicação da violência de gênero. Mas, na verdade, são as instituições ao nosso redor que estão tão saturadas com violência. Se o Estado utiliza a violência policial para resolver problemas de maneira punitiva, então ele dissemina a mensagem que a violência pode ser uma solução para os problemas domésticos também.
O ponto é que isso é muito mais complicado do que parece ser. E, então, se pressupomos que simplesmente o que devemos fazer é encarcerar essas pessoas para eliminar a violência de gênero, na verdade, estamos colaborando ativamente na continuidade da reprodução da violência de gênero que estamos tentando erradicar.”

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