Lucas Duarte: “com Francisco, radicalizar a consciência sobre as penas”

 Em Igreja em Saída, Notícias

“Somos todos Madalena,

mas amamos pedra.”

(Baco Exu do Blues)

Século 19. Cidade de Pilar, Alagoas. Francisco, um homem escravizado, é condenado, segundo a lei da época, à morte pelo assassinato do capitão da Guarda Nacional e sua esposa. Mesmo implorando clemência ao Imperador, Francisco é enforcado em 28 de abril de 1876. Oficialmente, esta é a última pena de morte executada no Brasil, tal prática seria abolida pelas legislações republicanas.

02 de agosto de 2018. Quinta-feira. Os órgãos oficiais de imprensa do Vaticano fazem circular pelo mundo a notícia que outro Francisco aprovou uma nova interpretação, à luz do Evangelho, sobre “a pena de morte” (nº 2267) no Catecismo da Igreja Católica (CIC). Onde se afirmava que “a doutrina tradicional da Igreja (…) não exclui o recurso à pena de morte,” a Igreja ensina que “a pena de morte é inadmissível, porque atenta contra a inviolabilidade e dignidade da pessoa, e se compromete, com determinação, em prol da sua abolição no mundo inteiro”.

Apesar de parecer um ponto fora da curva da Tradição, que reúne desde Ambrósio de Milão, no séc. 4, passando pelos grandes Agostinho e Tomás de Aquino, até alcançar Francisco Suárez, no séc. 16, dentre outros teólogos que legitimam o poder dos governos decidirem sobre a vida e a morte, Francisco olha para outra direção, não para as instituições, mas para o ser humano, ampliando a consciência da dignidade da pessoa, em continuidade com o magistério de seus predecessores.

Foi preciso mais de 140 anos e um Francisco argentino, latinoamericano, para a religião do império que assassinou o Francisco alagoano ampliar a noção de que a dignidade da pessoa não fica privada, apesar dos crimes e, que condenar alguém a morte é inadmissível com a Boa Nova de Jesus de Nazaré, aquele que foi igualmente condenado à morte, e morte de cruz. Entretanto, há que se perguntar o que a mudança do argentino causa nas estruturas do povo do alagoano, que vez ou outra reinventa mecanismos de morte,

Nossa pena de morte já foi abolida faz tempo. Ainda assim, entre ditaduras e tentativas democráticas, nossa história é marcada pela violência do sistema de justiça criminal e do aparato policial, que, apoiado na máxima de que bandido bom é bandido morto, faz morrer uma parcela expressiva da população brasileira, em sua maioria pessoas negras, como o Francisco alagoano. Através de uma sistema bárbaro, estruturado a partir da Guerra às Drogas e do encarceramento em massa, ambas políticas que se já mostraram ineficientes em seus objetivos e, na realidade, acabam produzindo vidas matáveis, morte em vida e morte de fato, como observou Rafael Godoi, homens e mulheres presas, famílias e crianças e comunidades inteiras são condenadas, selecionadas, aprofundando desigualdades, e consequentemente, criando estereótipos e estigmas do bandido, do criminoso e do inimigo a ser eliminado.

A atitude do Francisco argentino tem sentido profundo, como afirmou Fernando Altemeyer Jr. É necessário, portanto, que nós, imerso nesta estrutura capitalista, racista e patriarcal, captemos a radicalidade do sentido da dignidade da pessoa e da justiça, deste modo, é possível perceber que não há salvação dentro do sistema de justiça criminal. Por isso, a Pastoral Carcerária e outras entidades caminham tendo como horizonte o mundo sem cárceres e propondo, concretamente, a luta pelo desencarceramento como defesa da vida e promoção da dignidade. Chega de massacres, por um mundo sem cárceres!

Lucas Duarte é agente da Pastoral Carcerária da Arquidiocese de São Paulo

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