Dom Paulo Jackson: homília sobre a Campanha da Fraternidade 2018

 Em Igreja em Saída

Por Dom Paulo Jackson*
Prezado Dom Fernando Saburido, presidente do Regional Nordeste 2 da CNBB e Arcebispo de Olinda e Recife. Saudando-o, felicito os outros irmãos bispos aqui presentes.

Prezados presbíteros e diáconos, religiosos e religiosas, seminaristas, leigos e leigas que, pelo Batismo, vivem sua configuração ao Cristo, Rei da Paz.
Saúdo os líderes e membros de outras comunidades cristãs e de outras expressões religiosas; saúdo todos os homens e mulheres que trabalham por um mundo ético, pacífico e reconciliado.
Irmãs e irmãos,
A pregação de Jesus Cristo encontra sua principal expressão no espírito das Bem-Aventuranças. Registra-se em Mt 5,9: “Bem-aventurados os artesãos da paz, porque serão chamados filhos de Deus”. Três elementos estruturam a frase: a verdadeira felicidade; ser fazedor de paz; ser filho de Deus. Aí está o programa de vida para aquele que se torna seguidor de Jesus Cristo.
A Igreja Católica, no Brasil, desde 1964, realiza a Campanha da Fraternidade em nível nacional. Inebriada dos ares de aggiornamento do Concílio Vaticano II, na primeira fase, a Igreja propôs temas vinculados à sua renovação interna e à renovação pessoal dos cristãos. Depois, inspirados pelo Evangelho e pelo Ensinamento Social da Igreja, passamos a nos preocupar com realidades sociais e existenciais das comunidades, denunciando situações pecaminosas e anunciando a esperança de um mundo solidário e amoroso.
Deixemos que a Palavra de Deus que nos foi proclamada ilumine nossa reflexão. O profeta Isaías, no icônico capítulo 58 sobre o verdadeiro jejum que agrada a Deus, nos dá um itinerário para se construir uma sociedade pacífica e solidária, justa e menos desigual. O profeta é convocado por Deus para gritar a plenos pulmões e, como trombeta, levantar a voz contra o pecado e a transgressão de Israel.
E o pecado mais grave é a hipocrisia: os filhos de Israel vivem falsamente como se fossem uma nação que pratica a justiça, que não abandona o direito estabelecido por seu Deus, diz o v. 2. A causa fundamental do descontentamento de Deus está na prática religiosa exterior e estéril, dissociada da justiça e da paz: enquanto jejuam e realizam liturgias suntuosas, buscam negócios iníquos, exploram os trabalhadores, entregam-se a violências e rixas, ferem-se mutuamente e destroem a vida dos seus irmãos. Há um nítido descompasso entre a prática religiosa e a vivência social fundamentada na ética, no direito, na justiça e na solidariedade.
Nos versículos seguintes, que é o texto da nossa primeira leitura, Isaías oferece um itinerário para se viver uma espiritualidade bíblica encarnada. É também um convite para a nossa prática pessoal e como Igreja: 1. romper os grilhões da iniquidade, desamarrar as cadeias do jugo, por em liberdade os oprimidos e despedaçar as cangas que oprimem; 2. repartir o pão com o faminto, abrigar os pobres, vestir os nus e não se omitir a ajudar o próximo; 3. afastar do meio da sociedade os instrumentos de opressão, os hábitos autoritários e a linguagem injusta; 4. privar-se dos excessos e do supérfluo para acolher de coração aberto o indigente e prestar socorro ao necessitado; 5. guardar o dia do Senhor como um verdadeiro culto existencial, que compromete a vida inteira na direção de Deus e do próximo.
Na verdade, há algo que eu gostaria de dizer a todos nós aqui presentes nesta manhã: está na hora de retomarmos a ética social do Êxodo, dos Profetas e de Jesus Cristo; está mais do que na hora de revisitar o Ensinamento Social da Igreja. A Igreja precisa amar os pobres por causa do Evangelho e de sua Doutrina Social.
Dá-me muita tristeza quando encontro leigos, leigas, seminaristas e até diáconos, padres e bispos que têm urticárias e alergias quando escutam a palavra “pobre” ou “libertação”. Dá-me tristeza igualmente quando percebo que a ética bíblica é manipulada e transformada em ideologias baratas e escravizantes. Retornar ao Ensino Social da Igreja é uma das agendas fundamentais para os próximos anos, especialmente para a formação dos futuros diáconos e sacerdotes.
Quando uma sociedade decide viver segundo a agenda proposta pelo Senhor no Livro de Isaías, surge a experiência da bênção, do mundo novo reconciliado. Essa inaudita novidade é descrita por Isaías com beleza poética com sói acontecer: nascerá nas trevas a tua luz; tua vida obscura será como o meio-dia; serás conduzido pelo Senhor; Ele saciará tua sede na aridez da vida; renovará o vigor do teu corpo; serás um jardim bem regado; serás uma fonte de águas que jamais secarão; teu povo reconstruirá as ruínas antigas; serás restaurador de caminhos; te deleitarás no Senhor; serás transportado nas alturas; desfrutarás a herança de Jacó.
Esse texto é do período do pós-exílio babilônico. O povo de Israel havia perdido suas raízes culturais e identidade religiosa, sua economia foi devastada, suas instituições destruídas, seus líderes se perverteram, sua terra está desolada, o Templo foi incendiado, o tecido social esgarçou completamente.
É uma imagem semelhante a que vivemos em nosso país, sobretudo por causa da violência nacionalizada e interiorizada, mas também devido à corrupção, à impunidade, às benesses, aos privilégios escandalosos e a todo tipo de facilidades para os servidores mais especializados dos poderes executivo, legislativo e judiciário, enquanto a grande massa dos trabalhadores e trabalhadoras padecem a precarização do trabalho e as incertezas de uma reforma da previdência que não mexe nos privilégios dos grandes.
A imagem da restauração das ruínas antigas se coloca plenamente em acordo com o que desejamos com a Campanha da Fraternidade desse ano. O tema fundamental é a “superação da violência”, de toda forma de violência. O recente Atlas da Violência 2017 e o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2017, publicados pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, nos dão uma face sombria do quadro da violência no Brasil e especialmente nos quatro estados que compõem o nosso Regional da CNBB.
Os números são aterradores. O Rio Grande do Norte e Alagoas têm a segunda e a terceira posições em mortes violentas intencionais, perdendo somente para Sergipe. São taxas de quase 60 casos por grupo de 100 mil habitantes. Mais de 61 mil casos de mortes violentas intencionais acontecem no Brasil todo ano. Isso é mais do que os que morreram por causa da bomba atômica de Nagasaki em 1945.
Uma bomba atômica explode no Brasil todo ano. Há pequenas melhoras no Estado da Paraíba apenas, mas todos os quatro estados estão acima da média brasileira, que é de 26,2 vítimas por 100 mil habitantes, e muito acima da média proposta pela ONU.
O Pernambuco, por exemplo, teve um aumento de 13,2% em mortes violentas intencionais, 44,7% em latrocínios, além de ter um altíssimo número de pessoas desaparecidas: 30,5 pessoas por grupo de 100 mil habitantes.
Policiais civis e militares são vítimas da violência e geradores de violência. Polícias matam e morrem cotidianamente. A letalidade das polícias nos estados brasileiros aumentou 25,8% em relação a 2015: 4.224 pessoas foram mortas em decorrência de intervenções de policiais civis e militares.
Quase a totalidade das vítimas é homem (99,3%), jovem (81,8%) e é negra (76,2%). Há um processo de genocídio que vitima jovens rapazes negros. Nosso trânsito é agressivo. E mulheres homossexuais e afins padecem a força devastadora de uma sociedade machista. Carros são roubados e bancos explodidos e assaltados. Celulares desaparecem em cada esquina.
E os investimentos em segurança pública, educação, cultura, esporte e lazer caem. E tudo é associado a uma nítida sensação de impunidade, especialmente do grupo que assumiu o poder prometendo mudanças, mas está associado a todo tipo de conluios escusos, falcatruas e trabalho incessante para retirar direitos e garantias dos pobres, aumentando, assim, as causas estruturais da violência.
A manifestação da violência é ampla e complexa. Podemos, inclusive, recordar outros variados leques de relações: violência racial; exploração sexual e tráfico humano; contra os trabalhadores rurais e contra os povos tradicionais; violência e narcotráfico; ineficiência do aparato judicial; violência e meios de comunicação social; violência e religião.
Somente apelando para a criatividade da sociedade civil, das comunidades eclesiais, das pastorais, movimentos, grupos e serviços é possível reverter quadros tão desoladores.
Em primeiro lugar, convocamos todas as pessoas a rezar pelas vítimas da violência e pela conversão das pessoas que cometem violência. A cultura da paz e da reconciliação começa em nós. A paz do mundo começa em mim. É preciso mudar hábitos coletivos e individuais: respeitar a vida; rejeitar a violência; ser generoso; ouvir para compreender; preservar o planeta; redescobrir a solidariedade; desenvolver uma cultura de perdão e reconciliação.
Construir um mundo novo possível é o sonho de Deus revelado pelo profeta Isaías, mas, sobretudo, por Jesus Cristo.
Depois do chamado de Levi, Jesus é recebido por ele num banquete repleto de cobradores de impostos e pecadores públicos. Jesus faz comunhão de mesa com a considerada escória da humanidade, simplesmente porque só sabe amar.
A atitude farisaica é a exclusão debochada e a soberba dos prepotentes que não se comprometem com a vida. Acolhida, respeito e tolerância são atitudes novas, sempre acompanhadas da exigência da conversão radical. “Somos todos irmãos” foi o lema escolhido para a Campanha da Fraternidade desse ano: o fundamento da verdadeira fraternidade é a consciência de que temos um único Pai que faz nascer o sol e descer a chuva sobres maus e bons.
“Construir a fraternidade, promovendo a cultura da paz, da reconciliação e da justiça, à luz da Palavra de Deus, como caminho de superação da violência”: esse é o nosso desejo, esse é o nosso objetivo. Esse é o tempo favorável; é agora o dia da salvação. A vingança, o ódio e o ressentimento não são forças construtivas. Somente o amor e o perdão são forças criativas. Que o Senhor reconcilie nossa pátria e nos dê a graça de sermos homens e mulheres novos, convertidos e amorosos. Tornemo-nos arautos e construtores da paz. A paz começa em você. Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo.
* Dom Paulo Jackson é bispo da diocese de Garanhuns (PE)

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