Vera Lucia Vieira: "temos vários potenciais Carandirus hoje"

 Em Combate e Prevenção à Tortura

Por Daniel Gomes
A professora Vera Lucia Vieira, professora de história da PUC-SP e integrante do Observatório das Violências Policiais SP, foi uma das palestrantes no seminário 25 anos do massacre no Carandiru, evento organizado pela Igreja de São Paulo, pela ação das Pastorais Sociais reunidas na Coordenação para o Serviço da Caridade, Justiça e Paz, em parceria com a PUC-SP.
Em entrevista, Vera Lucia analisa as repercussões sociais e na segurança pública do país após o massacre. Segundo ela, violações de direitos, torturas e um sentimento de vingança ainda se fazem presentes, o que abre possibilidade para novos massacres. “As chacinas, execuções sumárias, mortes sob custódia, a tortura generalizada, muitas vezes por puro sadismo, acobertada pela impunidade e aceitas por juízes, confissões de culpa nitidamente obtidas sob tortura, demonstram o mesmo modus operandi e a continuidade das políticas públicas que estão gerando novos Carandirus em potencial”.
Confira abaixo a entrevista completa de Vera Lucia Vieira:
25 anos após o massacre do Carandiru, o que mudou na política de segurança pública no Estado de São Paulo para que um episódio como aquele não se repita?
Primeiro é necessário recolocar o que foi aquele massacre, que, infelizmente não é o único. Em 2 de outubro de 1992, cerca de 111 presos foram assassinados por uma tropa de choque composta por 74 policiais, a mando de seus superiores.
Estes entraram no presídio do Carandiru fortemente armados, após instauraram o pânico entre os presos e atiraram como se aquelas pessoas fossem moscas. O ato ocorreu no pavilhão 9, que abrigava em torno de 2.500 detentos de um total de 8.000 do presídio e era a ala destinada aos aprisionados ainda sem processo formalizado.
Os relatos do único sobrevivente, Sidney Sales, são aterradores e podem ser encontrados na internet, pois o massacre ganhou repercussão internacional. O problema é que o governo insiste em implantar políticas que tendem a aumentar a violência e, embora inúmeros estudos e sugestões tenham sido aventadas, ainda continua sendo mais fácil colocar o dinheiro público na construção de mais e mais cadeias, do que praticar políticas efetivas de ressocialização.
Isto se agrava porque atinge também um número incontável de jovens, aumentando as circunstâncias que os levam a situações de risco e, portanto, contribuindo para aumentar a violência. Você me pergunta o que mudou. Eu poderia responder falando sobre Planos, programas e projetos que configuram a política de segurança pública no país hoje e, em particular no Estado de São Paulo, pois as políticas estatais estão vinculadas às nacionais, particularmente na área de segurança pública.
No entanto, observa-se que a ênfase de tais políticas vêm se mantendo na melhoria do aparelhamento militar, na inovação tecnológica, no chamado aperfeiçoamento da burocracia, voltadas para articular as polícias nas ações de repressão e prevenção à criminalidade, com a criação de fundos, desenvolvendo ações voltadas principalmente para a juventude e buscando integrar o sistema judiciário aos órgãos de segurança pública.
Reformam-se as instituições e amplia-se o sistema prisional, tudo em nome da democracia, da solidariedade e dignidade do ser humano. Ou seja, combate-se a violência social que explodiu desde a década de 1980 nos centros urbanos com mais violência, e pior, o alvo da prevenção são os jovens. Por que os jovens? Está-se partindo do pressuposto de que a juventude é violenta por natureza? Ou que são os potenciais adultos violentos?
As unidades de prevenção, estão nas periferias, junto às populações pobres e mais vulneráveis. E quais os resultados de toda esta política? Conforme dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), desde 2001, quando a SSP começou a contabilizar as estatísticas criminais, o índice do primeiro semestre de 2017 só perde para o ano de 2003, quando foram mortas 487 pessoas. Para cada policial morto em serviço ou fora dele, os policiais mataram 36,88 pessoas, o que representa a maior taxa de uma série histórica.
O que ainda precisa ser aprimorado para evitar qualquer risco de que algo similar volte a acontecer?
As alternativas já vêm sendo aventadas, discutidas, formalizadas, encaminhadas, tudo o que você possa imaginar, vem sendo encaminhadas aos diferentes governos já há muitos anos. Há pouco tempo recebemos uma proposta para integrar um projeto para fazer propostas alternativas para diminuir a violência policial e melhorar a segurança pública. Respondi que não precisava gastar mais dinheiro com diagnósticos e contratação de gente para isto. Bastava consultar na internet mesmo, tudo o que já foi proposto, dito, reafirmado, etc…
Todos os estudos vão na mesma direção que, nas atuais circunstâncias, parecem utopias ingênuas: humanizar as polícias, extirpar de seu interior o ranço ditatorial e a percepção que têm de que vivemos em um estado de guerra, como ouvi um coronel afirmar outro dia. Não é possível conviver com sentenças judiciais pautadas em confissões nitidamente obtidas sob tortura, com agentes que criminalizam os movimentos sociais e a juventude em particular, em vez de cumprir o papel para o qual foram designados, ou seja, de proteger a população.
A separação entre cidadãos que têm que ser protegidos dos não cidadãos, coloca na mira da arma letal toda a população pobre, negra e que mora nas regiões distantes dos centros providos de meios urbanos. A solução é olhar para as evidentes situações de violência provocada pelo próprio estado e atuar contra tais fatores.
No entender da senhora, o que seria “fazer justiça” com os envolvidos no massacre, uma vez que nenhum dos executores e mandantes da ação está preso?
Sua questão pode estar vinculada ao fato de que agora em 2017 os 74 policias que participaram da operação tiveram seu julgamento anulado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, assim como os mandantes sequer entraram como réus.
Isto apenas atesta, mais uma vez, a impunidade que revela serem as letalidades cometidas pelos policiais, nada mais do que o cumprimento de ordens superiores com a conivência do poder judiciário.
Ou seja, a alardeada integração dos sistemas de segurança pública com o judiciário resultou nisto, de que esta absolvição é apenas um exemplo. Mas acho que o problema não está no agente policial em si. Ele cumpre ordens seria submetido à corte marcial se se insurgir contra uma ordem superior.
Os aparentes erros na gestão da tensão daquele 2 de outubro de 1992 levaram a mudanças no uso da força do aparato de segurança pública em situações similares?
Não, pelo contrário. As chacinas, execuções sumárias, mortes sob custódia (que são os assassinatos de pessoas sob custódia do Estado, nas cadeias), a tortura generalizada, muitas vezes por puro sadismo, acobertada pela impunidade e aceitas por juízes, confissões de culpa nitidamente obtidas sob tortura, demonstram o mesmo modus operandi e a continuidade das políticas públicas que estão gerando novos Carandirus em potencial.
Na quase totalidade, tais assassinados ficam impunes pois são justificados legalmente como “resistência seguida de morte”, ou seja, a culpa é do assassinado, mesmo que todas as evidências e testemunhas revelem outra realidade.
Os vários estudos feitos no Brasil pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, da Organização dos Estados Americanos (OEA) revelam sistematicamente o quanto a impunidade é alimentadora dessa violência.
Apesar de tais evidências, quer-se ampliar ainda mais as possibilidades da impunidade, pois há pouco o Ministério Público Federal barrou uma proposta de alteração do Código Penal Militar que retira da competência da Justiça comum crimes ‘dolosos contra a vida e cometidos por militares das Forças Armadas contra civis’ quando praticados no ‘cumprimento de atribuições que lhe forem estabelecidas pelo Presidente da República ou pelo Ministro de Estado da Defesa’.
Apenas como exemplo, quem não se lembra dos crimes de maio, quando em 2006, a polícia de São Paulo a título de ações contra o PCC, matou mais do que a guerra do Iraque? Foram 493 mortes por arma de fogo no Estado de São Paulo entre 12 e 20 de maio, uma média de aproximadamente 55 pessoas assassinadas a tiro por dia. Naquele mesmo maio, a guerra do Iraque deixou 2.103 mortos, cerca de 39 por dia, de acordo com os jornais. Enquanto isto o governo criou o Comitê Gestor do Programa de Gestão por Eficiência do Sistema SAJ nas Unidades do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, intitulado Projeto Justiça Bandeirante. Bonito nome, não? Bem patriótico.
Nos últimos anos tem se verificado a expansão do encarceramento. Essa é uma opção correta do Estado brasileiro para a resolução de conflitos? Há outras alternativas possíveis?
Investe-se fundamentalmente na expansão do encarceramento. Neste ano de 2017, conforme dados do CNJ, das 715.655 pessoas presas no Brasil, 297.096 estão em São Paulo. Ainda segundo tal Conselho, o Estado está no topo da lista com maior número de presos.
E ainda há um déficit de 182.598 vagas no sistema penal de São Paulo, dado este que revela a continuidade da superlotação. Todo ano o governo Alckmin, ao longo de seus 14 anos de gestão neste Estado, anuncia a inauguração de mais um ou dois presídios, ou várias unidades de encarceramento, mais modernas, eficientes, mais avançadas tecnologicamente, com gestão privatizada, pois empresas particulares seriam mais competentes para lidar com tais pessoas.
Mas na prática, permanecem as mesmas práticas que levam à desumanização total dos encarcerados, mais violentas até. Por exemplo, no sistema prisional a tortura física proposital, o abandono nas prisões superlotadas, sem remédios, sem assistência médica ou condições de higiene, proliferação de doenças letais, contagiosas, resultam em que os familiares se envolvam para garantir condições mínimas de sobrevivência nestes presídios, gerando um cinturão de corrupção com policiais, delegados, carcereiros.
Ou seja, a pena se amplia incomensuravelmente: se amplia para o apenado, se amplia para a família, para a comunidade que se forma em torno de toda esta situação. Gesta-se um mundo em que a tortura adquire dimensões outras que não apenas a física ou psicológica sofrida pelos aprisionados. Pois não é uma tortura cair nesta malha de desumanização? Basta olhar os dados do Observatório das violências Policiais e de Direitos Humanos para se verificar que a real política é a da criminalização das demandas sociais, dos pobres, negros e, em particular, da juventude. Temos vários potenciais Carandirus hoje.
Ficou algum aprendizado daquele episódio para a sociedade brasileira, uma vez que parece crescer a cada dia a ideia de que “bandido bom é bandido morto”?
Isto é também muito assustador, pois as pesquisas mostram que mais de 50% da população brasileira hoje acha que a pena de morte ou a prisão perpétua é a solução para os que cometem crimes considerados hediondos ou que as fazem se sentir ameaçada, como relatos das violências cometidas por contraventores. Contribui para tanto a imprensa sensacionalista, que toma o particular como se fosse o geral, expandindo a ideia de que vivemos mesmo em um clima de guerra.

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