Paulo Malvezzi: “Problema central é o encarceramento em massa, e não as facções’

 Em Combate e Prevenção à Tortura

Em entrevista DW Brasil (sucursal brasileiro do portal de notícias DW da Alemanha), Paulo Cesar Malvezzi Filho, assessor jurídico da Pastoral Carcerária critica os debates simplistas sobre a crise penitenciária no Brasil e afirma que a mídia alimenta “fantasias” sobre guerra de facções nas prisões. Abaixo segue a íntegra da entrevista.
DW Brasil: A Pastoral Carcerária teve algum diálogo recente com o Ministério da Justiça após as mortes em presídios no Norte?
Paulo Cesar Malvezzi Filho: O coordenador da Pastoral, Padre Valdir João Silveira, está em Paulo MalvezziManaus [a visita do padre foi feita na segunda semana de janeiro]. A primeira preocupação é com familiares, com os sobreviventes, respeitar o luto deles, e entender o que realmente aconteceu. Não temos nenhuma pauta de reivindicação nova para apresentar ao ministério. O que temos é a Agenda Nacional pelo Desencarceramento, que apresentamos para a presidente da República [Dilma Rousseff] em 2013. Nesta agenda, fizemos a identificação do caos do sistema prisional, análise da conjuntura, e apresentamos dez eixos com propostas para caminharmos para o desafogamento do sistema prisional para que pudéssemos reduzir minimamente os danos causados pelo encarceramento. Já tínhamos a perspectiva de que ocorreria o colapso do sistema prisional num horizonte próximo e, desde 2013, estamos batalhando em torno dessas propostas mais estruturais. Nenhuma proposta, isoladamente, pode dar conta da situação. Seria preciso articular e encadear uma série de medidas. E a Pastoral também está no Pará [mesma semana da visita do Padre Valdir]. A situação está muito crítica lá, em Santarém.
Após o impeachment de Dilma, a Pastoral levou essa agenda a Temer?
Levamos ao diretor do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), coronel Marco Antonio Severo Silva, com quem estivemos no final do ano passado. Com todas autoridades que conversamos em Brasília, apresentamos essa agenda, que é pública e está em nosso site.
A Pastoral sente alguma abertura deste governo para implementação dessa agenda? Declarações recentes do presidente e do ministro da Justiça vão na contramão do desencarceramento.
Mas não é só em relação a esse governo. Em todos os governos anteriores havia uma convergência de apresentar o cárcere como resposta a uma gama de conflitos sociais. Em 1990, tínhamos 80 mil presos. Hoje estamos beirando 700 mil presos. É um processo construído em diversos mandatos e por diversas forças políticas. Não há nenhuma força político-partidária que defenda hoje uma política de desencarceramento. O Brasil continua acreditando, insistentemente, no encarceramento e na penalização como via para a solução de problemas, de conflitos sociais. Infelizmente não há abertura neste governo e nem houve no anterior. O grande investimento que está sendo prometido agora e que já tinha sido efetivado na gestão de José Eduardo Cardozo [ex-ministro da Justiça], no governo Dilma, era de investimento em mais vagas no sistema prisional. A maior parte dos recursos do Depen sempre foi para promover a construção de novas unidades prisionais. Neste aspecto, não houve qualquer mudança de rumo. Continuamos com a política de encarceramento massivo e de destratos, muito identificada com a sociedade brasileira.
A Pastoral então quer entender o que de fato ocorreu nos presídios em que houve massacres para só depois se posicionar?
Já temos nos posicionado. A Pastoral já vem alertando para o colapso do sistema há muitos anos. Apresentamos propostas estruturais há muito tempo. Na questão de Manaus e Roraima, queremos entender a situação junto com os presos e familiares, especificamente sobre aquela situação, e não ficar caindo nas fantasias da mídia de brigas de facção. Isso é parte de um processo que denunciamos há muito tempo. Felizmente agora estamos vendo pessoas reconhecerem o encarceramento em massa, formulando soluções muito parecidas com as da nossa agenda. Estamos vendo os especialistas de ocasião surgindo e apontando os problemas. Mas a Pastoral alerta há anos para a situação, inclusive no Norte, que visitamos regularmente.
O senhor afirma que há “fantasias da mídia sobre brigas de facções”. A Pastoral não acredita que isso está no cerne das rebeliões?
No cerne não está. O que está no cerne do problema que vivenciamos hoje é o encarceramento em massa. As facções são o resultado óbvio desse processo. Você tem um sistema prisional que se expande em ritmo acelerado e em condições de absoluta degradação. O surgimento de facções, de organização dos presos, é algo absolutamente natural. A disputa dessas facções por controle também é algo natural e previsível. Para nós não é nenhuma surpresa. O problema não está nas facções. O problema está no fato de que o Estado se propôs a encarcerar um número absurdo de pessoas em condições que são piores do que animais. O que nos preocupa é a redução desse debate a uma briga de facções. Ficam fazendo essa discussão de que isso é resultado do conflito do Comando Vermelho com o PCC (Primeiro Comando da Capital), sendo que desde 2015 nós já tínhamos alertado as autoridades que a Família no Norte vinha ameaçando presos de outra facção. Eles já vinham dizendo que sofriam tortura, ameaças de morte. Tudo isso, para a gente, é uma coisa antiga.
O que os agentes da Pastoral identificaram, colhendo depoimentos desses presos no Norte, foram as ameaças da Família do Norte?
Isso. Eu visitei Puraquequara (Manaus), onde morreram quatro presos. Lá já havia os presos que se diziam do PCC alertando para situações de tortura. Vimos lá presos com pernas deformadas por espancamentos e torturas, presos já ameaçados de morte pelos presos de outra facção. As autoridades já sabiam disso, e nós fizemos o alerta. E isso foi antes do suposto rompimento com o Comando Vermelho. Achamos muito ruim reduzir isso a briga de facções. É o caminho ideal para não discutirmos os reais problemas do sistema e as soluções de que ele precisa.
Esses relatos sobre tortura e ameaças de morte nesses presídios do Norte foram levados a autoridades locais, estaduais ou federais?
Locais. Juízes de execução, defensores públicos estaduais. A unidade prisional no Amazonas tinha conhecimento da situação. Inclusive a denúncia envolvia os próprios funcionários. E não só no Amazonas. No Brasil, todos os presos são torturados por instrumentalização das facções. Se você quer torturar um preso basta colocar ele na ala de presos rivais. Ele vai ser torturado, e o agente do Estado não precisa mais encostar a mão no preso. Já havia denúncias na época de que a unidade prisional, o sistema como um todo, tinha conhecimento da situação. Tentamos levar isso para autoridades que poderiam tomar alguma providência.
Essa prática de misturar os presos de facções, para que sejam punidos ou mortos e torturados dentro do sistema, é comum?
Sim, é comum. Há algumas denúncias na imprensa de como a direção do presídio se mancomunava com determinada facção para oprimir determinados presos. Você ameaçar o preso de transferi-lo para uma unidade inimiga, ou colocar ele numa ala inimiga, e ele sofrer as consequências do sistema é muito comum. Então, as facções são instrumentalizadas para torturar e ferir os presos. Infelizmente essa é a realidade do sistema.
Isso ocorre para que a matança interna reduza a superlotação? Que vantagem o poder público leva com essa aliança tácita e de instrumentalização das facções?
A possibilidade de controle do sistema. Em presídios onde você tem o triplo da capacidade de lotação planejada, você só consegue gerenciar aquilo com auxílio de grupos organizados dentro dos presídios. Em muitas unidades os agentes penitenciários não conseguem nem sequer entrar dentro dos pavilhões. Isso é comum, por exemplo, no Complexo Aníbal Bruno, de Pernambuco, no Presídio Central de Porto Alegre. Em Roraima, onde houve a chacina, a própria direção do presídio falava que não tinha condições de entrar dentro do complexo prisional. É uma necessidade, para o Estado, fazer essas articulações para manter o controle de um sistema absolutamente colapsado, um sistema que degrada a vida dos que estão lá dentro.
A Pastoral tem um mapeamento das facções criminosas no Brasil?
São diversas. Em cada Estado que vamos encontramos facções diferentes. É uma dinâmica muito comum. Elas surgem, desaparecem, algumas ganham repercussão e estrutura maior, como o PCC. É um elemento muito comum num sistema tão precário e tão desorganizado. Os presos se organizam e vão continuar se organizando. E as facções se organizam de diversas formas. Algumas se organizam por perfil religioso. São grupamentos de presos. Podem ter lideranças ou não, podem ter interesses no tráfico ou não. É reduzir muito o debate falar que é uma questão só de tráfico de drogas, interna, uma disputa de espaços. A dinâmica do sistema prisional hoje é muito mais complexa do que isso. Mas não há mapeamento. Vi na imprensa a discussão de que há cerca de 27 facções. Achamos esse número absolutamente subestimado. Há muito mais que isso. Nossa preocupação é ficar num debate superficial sobre as facções e não focar o debate do desencarceramento. Não existe hoje no Brasil uma administração central do sistema prisional. O governo federal funciona como um indutor de políticas e financiamento. Mas cada Estado tem sua realidade, e muitos deles não têm essa realidade mapeada. Portanto, é muito difícil falar em número de facções no Brasil. As facções são criações dos presos, que se multiplicam.
Qual seria o caminho para o desencarceramento no Brasil?
Um dos pontos essenciais da Agenda é a descriminalização do comércio de drogas. A atual política de drogas é absolutamente falida e irracional. Você prende as pessoas acusando elas de tráfico e traz elas para um local, num presídio, onde o uso das drogas é liberado e onde elas auxiliam na administração do tráfico. É uma política insana, e mesmo a Pastoral sendo uma organização da Igreja, temos defendido abertamente a descriminalização do uso e do comércio. Simplesmente descriminalizando o uso e o consumo você tira 30% das pessoas das cadeias do país. Obviamente há uma dificuldade de as pessoas encararem o problema e bancarem uma solução dessa. O aprisionamento provisório, que responde a 40% dos presos, pode ser libertado ao extremo. Você precisa colocar prazos, limitar os enfoques de aprisionamento provisório, transformar a prisão de fato num recurso de exceção e não numa regra, como é hoje. Há elementos que impulsionam a escalada de aprisionamentos. As privatizações, por exemplo. Vedar expressamente a privatização no sistema prisional é uma medida essencial para evitar o fortalecimento das medidas de encarceramento. Uma série de medidas precisariam ser articuladas e algumas, se implementadas agora, não demorariam muito para surtir efeito. O indulto, por exemplo, poderia ser utilizado como via de desencarceramento. Na Itália, o presidente Giorgio Napolitano, na época em que o sistema penitenciário italiano estava sendo acusado pela Corte Europeia de Direitos Humanos, uma das saídas que ele apresentou foi o processo do indulto. Aqui poderia ser um instrumento adequado, mas o último indulto feito pelo presidente Michel Temer e pelo ministro da Justiça é terrível, não beneficia ninguém. Foi o pior indulto que tivemos nos últimos anos. As regras de indulto hoje são mais rigorosas do que o decreto assinado pela presidente Dilma Rousseff.

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