Haroldo Caetano: ‘A incomunicabilidade nos presídios brasileiros’

 Em Combate e Prevenção à Tortura

Haroldo CaetanoReproduzimos a seguir, artigo publicado em fevereiro no site Justificando (http://justificando.com) pelo promotor de Justiça Haroldo Caetano da Silva, mestre em Direito Penal pela UFG e doutorando em Psicologia Social pela UFF. Ele também é autor do livro “Ensaio sobre a pena de prisão” e tem pontos de vistas comuns ao da Pastoral Carcerária sobre a realidade prisional no Brasil.
 
A INCOMUNICABILIDADE NOS PRESÍDIOS BRASILEIROS
Quem assistiu ao seriado de televisão Prison Break pôde observar que na penitenciária estadunidense onde a história começa os seus presidiários têm acesso ao telefone público, disponível no pátio e de uso livre. Até pouco tempo atrás, era assim também nos presídios brasileiros. E assim deveria ser, como regra.
É que a Constituição (aquela que vemos aos poucos ser riscada em pontos fundamentais) prevê a vedação da incomunicabilidade do preso, mesmo na situação excepcional do “estado de defesa”. Dê uma olhada no art. 136, § 3º, inciso IV, da nossa Carta Magna. E seja rápido, antes que também aquele dispositivo seja riscado. Para o constituinte originário, pautado pela dignidade humana, em hipótese alguma o preso deverá permanecer incomunicável.
Acontece que veio uma lei no nosso permanente estado de urgência punitiva (Lei 11.466/2007) que, a pretexto de combater o crime praticado a partir do interior das prisões, modificou a Lei de Execução Penal para proibir o acesso do preso ao telefone:
 

Art. 50. Comete falta grave o condenado à pena privativa de liberdade que: (…)
VII – tiver em sua posse, utilizar ou fornecer aparelho telefônico, de rádio ou similar, que permita a comunicação com outros presos ou com o ambiente externo.

 
Não obstante a redação do novo dispositivo dê a entender que a proibição se refira a aparelhos móveis, também os orelhões acabaram sendo retirados dos pátios dos presídios Brasil afora. A incomunicabilidade fez-se regra.
Uma situação inconstitucional, mas que, todavia, se mostrou simpática ao olhar carrasco da maior parte da população, guiada pelos discursos de ódio presentes em quase todos os espaços públicos e privados. Essa praga que, tal qual a cegueira branca da ficção de Saramago, se espalha ao menor contato.
A violência nas cidades não muda em sua espiral crescente, mas a retirada dos telefones dos presídios levou a algo muito sério, embora invisível aos olhos da população. O que acontece dentro da prisão, esse lugar desconhecido, passa a ser mais difícil – quando não impossível – de ser comunicado ao mundo exterior. E diferentemente daquilo que o discurso de ódio apregoa, o telefone serve na imensa maioria das vezes para, como para qualquer pessoa, um contato com um familiar ou o advogado, para resolver algum assunto pessoal, mas, principalmente, para buscar assistência quando o Estado a nega; e, claro, para pedir socorro. A desassistência é regra nos presídios brasileiros e pessoas adoecem rápida e profundamente, morrem, por falta de um atendimento médico, gêneros alimentícios, um remédio simples que seja. Outros são assassinados pelas desavenças adquiridas no cárcere ou, eventualmente, em situações que apontam para práticas e omissões de agentes do Estado, sem qualquer possibilidade de contato externo do preso para algum pedido de ajuda.
Esse é o desespero verbalizado pelo detento Julio Cesar, do presídio de Jaraguá, interior de Goiás, ao ligar para uma rádio local e implorar por atendimento médico. Mesmo sabendo das consequências fatais para o que a lei agora define como “falta disciplinar”, mesmo conhecendo as consequências regulamentares e as não regulamentares (estas as mais severas) para a exposição pública do que é visto como “fragilidade na segurança” da prisão, ainda assim apela para um socorro que não chega. O áudio foi depois veiculado pelo jornal O Popular.
Aqui merece elogio a atuação do jornalista Lenival Santos, da Rádio Cidade de Jaraguá. Mesmo de improviso e colhido de surpresa pelo inusitado do fato, percebeu e realçou a necessidade de que aquele homem desesperado do outro lado da linha fosse levado para atendimento médico. E se comprometeu, inclusive, a buscar essa assistência.
Já a cobertura do jornal O Popular não se deu ao trabalho sequer de problematizar os fatos, perdendo boa oportunidade para fazer uma melhor discussão do assunto. Limitou-se a reproduzir o áudio. Como qualquer usuário recreativo de Facebook, o jornal de maior circulação de Goiás curtiu e compartilhou. Ficou evidente, ali, que o espetáculo seria mais importante do que a informação.
São muitos os gritos de socorro que vêm das prisões e, embora eu esteja licenciado do Ministério Público e residindo fora do Estado de Goiás, é natural que depois de vinte anos de atuação junto ao sistema prisional ainda receba contatos de presos e familiares, pelas redes sociais, em sua busca desesperada pela solução de problemas. Esta semana, depois de seis meses longe da execução penal, tive outro choque daquela realidade que faz parte do cotidiano de quem atua nessa área, ao compartilhar via Facebook o pedido de socorro da mulher de um presidiário da Casa de Prisão Provisória de Aparecida de Goiânia, ele que participou de outro episódio que expôs a “fragilidade na segurança” prisional, também por conta do uso de telefone celular. No seu grito por socorro, ela escreveu:
“Bom dia, Sr. Promotor. O senhor soube do que houve ontem dentro da Casa de Prisão Provisória pela manhã? Os agentes entraram em apenas um bloco e deram tiros de borracha nos presos, tem pelo menos três no hospital, foi um derramamento de sangue, eles foram uns covardes. Dr. Haroldo, sei que o senhor não está mais atuando nessa área, mas eu conheço o trabalho do senhor, e o senhor já ajudou meu marido uma vez em 2014, se tiver algo que o senhor possa nos ajudar, eles estão limitando as senhas para visita no domingo e agora estão querendo proibir a comida caseira que as famílias levam aos domingos. Te faço um apelo doutor, se houver algo que o senhor possa fazer para nos ajudar, falo em meu nome e em nome de muitas visitantes que estão muito preocupadas com seus familiares naquele lugar. Obrigada pela atenção! Desculpe o incomodo”.
Nesta ocorrência da CPP, alguns presidiários gravaram um vídeo que circulou nas redes sociais, em que faziam uma comemoração festiva ao som de funk. Das redes sociais para a televisão e para os portais dos veículos de comunicação convencionais foi apenas um passo, ao melhor estilo “curtir e compartilhar”. Acontece que as consequências (não regulamentares) desse evento ocasionaram a morte de um dos presidiários que teriam aparecido no vídeo. O pedido de socorro, feito pela manhã via Facebook, pelo visto não chegou a quem pudesse agir a tempo. À tarde veio a notícia da morte naquela cela.
Voltando ao seriado Prison Break, ali pela segunda ou terceira temporada parte da história acontece dentro de um presídio no Panamá, onde a imundície é regra e a morte faz parte da rotina de contínua violação da dignidade humana dos presidiários. Ah, e sem acesso ao telefone público. Talvez seja esse o modelo de presídio em que a sociedade brasileira queira se espelhar.
 
Haroldo Caetano da Silva é Promotor de Justiça, mestre em Direito Penal (UFG) e doutorando em Psicologia Social (UFF). Autor, dentre outros, do livro “Ensaio sobre a pena de prisão” (Juruá).
 
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