“Ação truculenta na cracolândia criminaliza os mais pobres e prioriza interesses imobiliários”, afirma agente da Pastoral Carcerária

 Em Combate e Prevenção à Tortura

Por José Coutinho Júnior

A polícia militar de São Paulo realizou recentemente uma ação na cracolândia. Sob o pretexto de prender o chefe do tráfico na região, a PM se utilizou de violência contra os dependetes químicos e aterrorizou os moradores da área.

A ação foi elogiada pelo prefeito João Dória (PSDB), que também protocolou um  pedido, inicialmente foi aceito pelo juiz Emílio Migliano Neto, da 7ª Vara da Fazenda Pública de São Paulo, para internar de forma compulsória os dependentes químicos da cracolândia.

O Ministério Público, junto com a Defensoria Pública do estado, derrubaram a decisão, mas a prefeitura ainda recorre.

A ação da PM e a postura do prefeito de São Paulo vem sendo criticada por organizações sociais e por órgãos internacionais, como a ONU e a Organização Mundial da Saúde (OMS).
Para Caio Mader, agente da pastoral carcerária e membro do grupo de trabalho (GT) Saúde Mental e Liberdade, a ação na cracolândia é uma forma de criminalização da pobreza, que ocorreu por interesses econômicos:
“Cabe se perguntar qual o valor da vida humana. Se ela vale alguma coisa,  como vamos lidar com ela? Como se tem lidado com ela? É uma ação estratégica também, porque vemos que interesses econômicos, sobretudo imobiliários, se sobrepõem aos de proteger a vida daqueles cidadãos”.
Confira abaixo a entrevista de Caio Mader sobre a ação na cracolândia ao site da Pastoral:
Como o GT de Saúde Mental e Liberdade enxerga a ação na cracolândia?
Nós entendemos que a ação truculenta da PM não está desconectada de um cenário mais amplo, relacionado com a questão das drogas e o sistema carcerário, que é como uma certa população é relegada a segundo plano em termos de cidadania.
Existe uma criminalização da pobreza e das drogas, mas que aparece socialmente através dessas ações, não só pelo que a gente vê na cracolândia: o perfil majoritário das pessoas presas hoje compreende muitos usuários e traficantes, com enfoque nas mulheres, que acabam transportando drogas no corpo.
Há uma marginalização da população na cracolândia, e um preconceito da sociedade com eles que justifica essa ação?
É uma população extremamente marginalizada. Para além de tudo a cracolândia é uma metáfora. Pessoas “abjetas” do ponto de vista social, precarizadas, sem acesso aos seus direitos, mas que são um produto da sociedade capitalista que vivemos, desigual e produtora de desigualdade.
Essa marginalização é tanta que aos olhos do poder público e da sociedade é como se essas pessoas pudessem morrer. Uma ação truculenta como aquela e o grau de mobilização que gera mostra que é uma população que pode ser internada, afastada.

Cabe se perguntar qual o valor da vida humana. Se ela vale alguma coisa, como vamos lidar com ela? Como se tem lidado com ela? É uma ação estratégica também, porque vemos que interesses econômicos, sobretudo imobiliários, se sobrepõe aos de proteger a vida daqueles cidadãos.

Aquela área próxima da Luz é estratégica.O Teatro Porto Seguro é muito próximo da região, é uma área interessante ao mercado imobiliário, e um prefeito alinhado com interesses empresariais e das classes mais altas logicamente atende essa demanda. É interessante tirar essa população, da maneira que for, para que ela seja dada ao mercado imobiliário.

A reforma antimanicomial não mudou a mentalidade de internações forçadas? Por que isso vem à tona agora?
Existe a lei 10216 de 2001, conhecida como lei da reforma psiquiátrica. Ela instaurou um novo paradigma no tratamento psiquiátrico, de produzir cuidado em termos de saúde mental. Ela instituiu a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), da qual os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) fazem parte.
O motivo disso foi acabar com o modelo hospitalocêntrico manicomial e garantir que a terapia fosse dada em liberdade, não só para quem tem sofrimento mental, mas também para dependentes químicos, que foram enquadrados no campo da saúde ao invés da segurança pública.
O que essa ação da PM mostra é como as nossas conquistas legais são frágeis. Discutimos internamente o quanto a gente pode apostar numa luta puramente legal, que só foque na lei e sua aplicação.

Porque o que a gente vê é que uma conquista legal não é suficiente. Depois de 16 anos da lei antimanicomial, temos essa ação e o discurso de internações compulsórias, como se estivéssemos voltando pro século 19.

Em que tipo de luta podemos apostar então?
É uma pergunta difícil na atual conjuntura. Uma conquista concreta que a gente pode analisar é o Ministério Público ter derrubado a liminar da justiça que autorizava a internação compulsória coletiva, reforçando a lei, mostrando que internação compulsória, diferente do que era no passado, é exceção e deve ser usada somente quando todos os recursos extras hospitalares estivessem esgotados.
Foi uma vitória, mas a prefeitura ainda está tentando recorrer da decisão, vamos ver no que vai dar.  
Em relação ao tratamento das pessoas, precisamos de uma ação que valorize o tratamento territorial. A RAPS e os CAPS, quando foram instituídos, foram para fazer o cuidado em liberdade, e o programa De Braços Abertos, criado na gestão passada, ia nessa mesma lógica.
A ideia não era internar o usuário, era desenvolver uma ação intersetorial que envolvesse assistência social, saúde, que promovesse assistência dessas pessoas sem internação. A internação é para casos muito graves e específicos, e para ser feita precisa de um aval de um juiz, tudo isso deve ser respeitado.
E o que a gente observa agora nessa nova gestão é a tentativa de transformar a exceção em regra.
Como você avalia o programa De Braços Abertos e o seu descontinuamento pela atual gestão?
O Haroldo Caetano, Promotor do estado de Goiás, escreveu recentemente sobre como um “populismo manicomial” é interessante. Porque ao mostrar aquelas cenas, a polícia batendo nos dependentes químicos, você angaria votos da parte mais conservadora da sociedade. Tem interesses políticos e empresariais muito fortes por trás dessa ação.

O De Braços Abertos foi um programa elogiado internacionalmente, por ter uma linha de redução de danos. Não se trabalhava com abstinência nem como se o problema fosse individual. O programa via a questão como problema social, então todo o poder público tinha de se mobilizar.
Tanto a ONU como a OMS condenaram a ação da prefeitura, vista como truculenta. O programa Redenção da prefeitura vai na contramão desses princípios. Ao invés de trabalhar com redução de danos, é uma lógica individual, que responsabiliza o dependente químico. Se a pessoa sofre disso, é culpa dele e ele precisa se redimir. O próprio nome do programa já dá essa noção de responsabilização.
E como se dá a Internação compulsória?
A internação compulsória é restrita ao campo penal. Ela acontece em casos de segurança. Um indivíduo que comete um crime por causa de um surto, que pode ser provocado pelo uso de drogas, o juiz pode entender que a pessoa não vai ser presa, ela vai ser tratada.
Se essa pessoa é internada, não há um tempo definido, o indivíduo fica submetido a laudos periódicos atéestar “curado”. O que acontece é que a rede ambulatorial não tem sido usada de forma efetiva.
Muitas vezes os juízes aplicam a medida de segurança como internação compulsória, levando as pessoas para os Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (HCTP), onde o dependente fica confinado e não há qualquer tipo de cuidado. Não é a toa que temos observado um massivo crescimento de usuários de drogas nesses espaços.
Qual seria a forma ideal de tratar essas pessoas?
A princípio, com todas as questões e contradições do modelo RAPS-CAPS, acho que ele é uma aposta válida. Mesmo com esses equipamentos às vezes operando com a lógica manicomial ainda, a gente tem que reconhecer que o avanço foi importante, e a medida de segurança pode ser usada para o tratamento aberto.
Se é reconhecido que o indivíduo precisa de tratamento, ele deve receber toda assistência que ele tem direito, e isso só é assegurado pelos CAPS. Como eu já disse antes, a internação compulsória tem que ser feita em último caso. Ir para um HCTP não é tratamento.
As pessoas ficam confinadas, faz tempo que não há terapia ocupacional nesses espaços. Estar totalmente isolado, com laços cortados e sem poder ir e vir não ajuda no tratamento, pelo contrário, só piora o estado mental dessas pessoas.
Existem dados sobre esse aumento de dependentes químicos nos HCTPs?
É difícil dar um número concreto porque é um fenômeno recente. Vale destacar não só o crescimento de usuários de crack nos HCTPs, mas do crescimento das alas psiquiátricas nas prisões.  Como os HCTPs não trabalham com regime de superlotação, as pessoas ficam aguardando em penitenciárias comuns.

Vale lembrar também que muitas pessoas no julgamento, por indicação dos advogados, clamam ter estado sob efeito de psicotrópicos para não ir para a prisão, achando que vão para uma clínica, comunidade terapêutica, algum lugar menos restritivo e desumano que o presídio.

Mas o que acontece é que isso é um tiro no pé, porque a pessoa pode ir para o HCTP e uma pena de seis, sete anos pode virar muito mais que isso.
Como é a condição das pessoas nessas alas psiquiátricas?

É extremamente ilegal que pacientes e pessoas em tratamento estejam confinadas em presídios comuns, porque as condições são degradantes e o isolamento só contribui para o sofrimento psicológico daquela pessoa.
Isso é muito preocupante, porque o próprio ambiente prisional, todas as violações e degradações a que eles estão submetidos promove um agravamento desse estado.
A pessoa jamais pode ter uma recuperação estando num ambiente como esse. O consumo de psicotrópicos, muitas vezes sem laudo psiquiátrico é extremamente alto. Para a prisão existir, ela precisa anestesiar, sedar as pessoas que estão presas.
É uma pergunta que talvez não tenha resposta, mas há uma solução para a questão da cracolândia que respeite os direitos e a dignidade daquelas pessoas?
Não existe mágica. Eu acho que a gente não pode desconectar a cracolândia de um cenário mais amplo, que é o sistema econômico que a gente vive. Enquanto mudanças mais estruturantes não ocorrerem, é difícil que uma cracolândia não exista.

Mas falando do que pode ser feito, eu acho que tinha um caminho trilhado que estava sendo bom com o programa De Braços Abertos, entendendo o problema das drogas como social.
Infelizmente, parece que esse cenário era muito mais frágil que a gente imaginava e sinceramente é difícil apostar no que é mais viável. Vale pensar numa ação governamental que esteja alinhada com os movimentos sociais que fazem trabalhos na cracolândia.
A gente não pode pensar que a produção do cuidado é algo estatal. Vale a pena o poder público pensar no que já existe, que movimentos fazem trabalho lá, como o CAPS atua, ao invés de tentar reinventar a roda e retroceder como está sendo feito agora.

DEIXE UM COMENTÁRIO

Volatr ao topo